Plano de fuga

24/06/2001
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Por ter respondido à advertência de Leão, chefe da carceragem, espancaram-no durante meia-hora. Nessa noite, não conseguiu dormir. Levantou-se, agarrou as barras de ferro da janela e ficou com os olhos perdidos na própria imaginação: o dia de festa no salão nobre da penitenciária, o representante do senhor governador, o secretário de Justiça, o juiz corregedor, o delegado geral do Estado Seu corpo, colado à grade, brilhou como um ídolo de ébano, excitado pelas coisas que fervilhavam em sua cabeça, a visão da cerimônia, ele se erguendo de repente da cadeira, revólver à mão, atirando em Leão e em mais dois ou três carcereiros, seqüestrando as autoridades, a exigência de um helicóptero, desses de transportar tropas, e, enfim, o vôo para a liberdade. Na manhã seguinte, o plano de fuga pairava na cabeça daquele homem preso Há treze anos, condenado a sessenta e quatro por latrocínio. Primeiro, era preciso obter o principal: a arma. Tonhão trabalhava na alfaiataria, orientado por mestre João, velho funcionário prestes a se aposentar. Tonhão encostou na mesa de mestre João: "Vou te entregar pro diretor". "Qual é, malandro?", indagou assustado o velho, espichando os olhos por cima das lentes brancas dos óculos que escorregavam nariz abaixo. "Tá de acordo com os home, negão?" "Se güenta aí, cara, sou bandido e você é polícia. Não confunde as partes não". Era esse o papo de todos os dias. Tonhão ameaçando entregar o funcionário que introduzia maconha no presídio, mestre João em pânico, imaginando o escândalo, a reação do diretor, a demissão. "Pelo amor de Deus, negão, não vá estragar meu fim de vida. Diz o que quer de mim; sabe que, podendo, faço". Tonhão queria levá-lo ao desespero, ver mestre João chegar no ponto. Não demorou muito. Na semana seguinte, o aprendiz de alfaiate deu a cartada final: "Só não te entrego se me trouxer uma máquina com caixa de balas". Disto mestre João tinha certeza: Tonhão fazia o que falava. Era escolher. Ser denunciado ou levar a arma, confiando que, mesmo sob tortura, o preso jamais o entregaria. O 38 ingressou na penitenciária dentro da pasta de mestre João, que não era revistado. Cobra criada, o preso sabia que não podia ficar com o revólver em seu poder. O mais indicado seria confiar o revólver a um companheiro que fosse tão vaidoso quanto medroso. Ficaria orgulhoso de ter em seu poder uma arma de fogo. Havia na penitenciária um assaltante conhecido como Matador. Condenado a mais de cem anos, Matador decepcionava os que privavam de sua convivência. De tão medroso, sempre assassinara as pessoas que assaltara, com medo de reagirem ou encontrarem um meio de se vingar. Tonhão julgou Matador o homem adequado para esconder o revólver: tinha um comportamento exemplar, não era visto com desconfiança pelos carcereiros, não possuía suficiente ousadia para tentar a fuga sozinho e nem era bastante covarde para entrar em acordo com a direção. Matador remetera à alfaiataria uma bola de futebol para ser costurada e foi dentro dela que recebeu o 38. Na cela, guardou-o no fundo falso do assento do tamborete de madeira. Certa noite em que andava ruminando o plano, Tonhão viu-se tomado por uma interrogação: e se a arma for encontrada e Matador der com a língua nos dentes e me entregar? Era preciso de um bom álibi para preservar mestre João. Domingo era dia de visitas e Efigênia viria vê-lo. Ele sabia que ela já era de outro e ela sabia que ele sabia. Tonhão fingiu juras de amor e disse ao ouvido dela: "Tenho uma máquina enrustida aqui dentro. Pode ser que caia. Não quero complicar a vida de ninguém mas, se acontecer, quero levar um polícia desses pro brejo. Preste atenção. Dando azar, vou jogar a seguinte cascata: que já tinha essa arma lá em casa e aqui, na visita, eu disse aonde estava guardada e que mandaria um loque apanhar o berro no barraco. Você, tendo recebido o bisú, entregou ela ao loque, como mandei. Mas o nome do distinto você não sabe, nem o que faz. Sabe a cara, é claro, porque viu ele lá no nosso chão de estrelas. Pois bem, vou te mostrar um loque aqui dentro. Guarde bem a fuça dele. Qualquer sujeira, foi ele quem buscou o tresoitão". Tonhão indicou e Efigênia fotografou na memória o rosto de Leão, o carcereiro-chefe odiado pela massa carcerária. Cinco meses depois, Matador foi conduzido ao fórum. A guarda aproveitou a ausência para dar uma batida em sua cela. Arrancou das paredes as fotos de mulheres nuas, cortou os barbantes que serviam de varal, levantou o soalho de madeira com um pé-de-cabra, enfiou um arame pela privada, pela boca da torneira, pelo ralo, desatarraxou a lâmpada do teto, bateu nas grades para ver se estariam sendo serradas, quebrou o tamborete de madeira. O 38 correu pelo chão, sob o espanto dos guardas. Duas horas depois, banhado em sangue, os órgãos genitais roxos e inchados de tanta pancada, Matador não resistiu e cantou: "O berro é transa do Tonhão". Tranqüilo na alfaiataria, Tonhão pregava bolsos em camisas, agulha e linha perdidas entre seus dedos grossos, quando Leão surgiu à porta: "O negão aí quer ter a bondade de comparecer", disse o carcereiro-chefe, como se a voz brotasse de uma geleira. O preso pressentiu logo - "sujeira!" Leão falou com sarcasmo: "Tá sabendo que hoje demos uma batida por aí?" Tonhão revistou a própria cela em pensamento e conferiu que, lá, nada havia que não pudesse ser encontrado. "Tô sabendo não", respondeu cabisbaixo. "Pois é, muamba da grossa". "Fumo?" "Que nada, malandro, coisa fina, niquelada, polida que nem prata e muita munição de banda". O prisioneiro sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha e intuiu logo: caiu o 38! O coração se acelerou. Foram direto para a sala de torturas. Logo que a porta foi fechada às suas costas, Tonhão recebeu o primeiro chute à boca do estômago. A partir daí, seu corpo transformou-se num deserto muito árido, queimado pelo Sol, atravessado por esteiras dentadas de tratores, a carne retalhada em postas disputada por urubus. Ao receber um balde d'água no rosto, recobrou os sentidos, fez que não agüentava mais e disse: "Foi o Leão. Foi quem me trouxe a máquina". Os guardas olharam para o carcereiro-chefe, que bufava de ódio, a baba espumosa derramando pela boca: "Este nego vai contar tudo e, depois, a gente põe nele um paletó de madeira". As sevícias prosseguiram e Tonhão, não tendo mais por onde sentir dor, manteve firme a versão: "Leão transa fumo comigo, há anos, e foi lá em casa apanhar o berro com minha mulher. Ia levar uma nota preta na tramóia, mas o cagão do Matador dormiu de touca". Afinal, vendo o preso moído de pau e sustentando a mesma história, o diretor decidiu apurá-la. O oficial de Justiça bateu à porta do barraco. Efigênia atendeu. "Tonhão tinha uma arma guardada com a senhora?", indagou. Com a tristeza estampada na face, ela disse que nem sabia onde o revólver andava escondido, foi numa visita que ele falou o lugar, que era para eu entregar a um homem que viria buscar e, dias depois, apareceu um senhor forte, brancão, cabelos de fogo, dizendo que tinha vindo apanhar a encomenda do Antônio, e eu entreguei pra ele a arma. "E como era o nome do homem?" "Não sei não. Não guardei não senhor". O oficial abriu a pasta e começou a mostrar uma por uma das fotos: "Foi este aqui?" "Não senhor". "E este?" "Também não". Passados dezoito fichas com os retratos dos carcereiros da penitenciária, foi exibida a foto de Leão. "E este?" Efigênia pegou o papel, olhou bem e devolveu-o. "Foi sim. Tá mais novo no retrato, mas foi ele". O diretor não queria acreditar. "Logo o Leão! Deve estar batendo o pino de tanto dar porrada em bandido". Decidiu mandar buscar Efigênia, pois a ordem do juiz corregedor era tirar tudo a limpo. Ela entrou no salão nobre e viu, sobre o palco, a fila com todos os funcionários da penitenciária. Nervosa, mordia o lábio inferior e suava muito na palma das mãos. "Agora a senhora vai fazer o favor de apontar o homem que apanhou a arma em sua casa", disse o diretor. A mulher encarou um por um dos homens, andando com passo miúdo e, de repente, viu-se à frente de Leão. Não titubeou: "Foi este aqui, doutor". O que se passou, então, não foi testemunhado pelos prisioneiros mas, à boca pequena, corre, ainda hoje, que Leão entrou no cacete para confessar suas transas na penitenciária. O certo é que foi demitido "a bem do serviço público", para a alegria geral dos presos que, eufóricos, se sentiram vingados do que haviam sofrido nas mãos do carrasco. Após um ano de castigo na cela-forte, por tentativa de fuga e porte ilegal de arma, numa tarde Tonhão entrou na alfaiataria e indagou com um sorriso cúmplice: "Ainda aqui, mestre João?" "Ainda, negão, mas se Deus quiser me aposento no final do ano", respondeu calmamente o velho, erguendo os olhos acima das lentes brancas que pendiam sobre o nariz.
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