Reality show
11/02/2004
- Opinión
Sim, quero ver a tua vida em detalhes, minuto a minuto, e ouvir as
palavras que jorram de tua boca, rir o teu riso e enraivecer-me com o
teu rancor, assistir à tua paquera, ao teu namoro, ao teu gesto de carinho,
à tua transa, espelhando tua beleza em minha indigência.
Quero deixar de lado amizades, trabalhos, livros e lazer e, de olhos
pregados em tua magia, absorver a tua arte de movimentar-se no labirinto
da quimera, livre de dores e afazeres, mergulhado na fama e na fortuna.
Venerarei o teu ócio na vitrine, exibindo-te sem pudor a milhões de
olhos, despido por infinitas imaginações, liberto das grades odiosas dessa
existência de penúria anônima, escrava da rotina atroz de quem jamais
aprendeu a voar, nem foi aquinhoado pela sorte.
Abrirei em meu monitor a porta da tua casa mágica e, sob o peso de
minhas carências, ingressarei virtualmente em tua liberdade, no teu gozo,
no teu charme, no teu riso, na tua sensualidade, como quem toca com os
olhos os veneráveis ícones que nos fazem transcender da mediocridade
cotidiana.
Minha fidelidade ao teu exibicionismo será a chancela que sacramentará
a tua vida como real e, do lado de cá, buscarei a alforria de minha
indigência em tuas loucuras, em teus jogos e em tuas danças. Quero decifrar
em ti a minha própria intimidade, rasgar a minha alma em tuas mãos e deixar
a minha mente impregnar-se dessa ilusão que faz de mim teu pequeno irmão.
Recobrirei a minha realidade com a tua fantasia e farei de teu
espetáculo o brilho de meus olhos vazados, nessa permuta hipnótica de
quem busca a complacência com seus próprios limites para tentar encobrir a
mesquinhez que me corrói.
Ficarei atento ao teu banho, ao teu sexo, à tua ira e às tuas refeições, fiel à exposição perene deste teu ser desprovido de preocupações
e conteúdos, entregue a esta liberdade que faz de ti o que não sou, e me
permite projetar em teu vigor as minhas fraquezas e em teu esplendor o
sabor amargo de meu anonimato.
Verei em tua janela, que se abre para a minha casa, a subversão de
todos os valores, como se nos cômodos que te abrigam findassem todos os
princípios, escorrendo pelo ralo tudo aquilo que num lar soava como
sinônimo de família. Ampliados pela eletrônica, meus olhos contemplarão as
tuas intimidades mais ousadas. Sentirei os teus odores e beberei o teu
suor.
Esticarei o meu olhar até os limites proibitivos do escárnio e, quem
sabe, verei o teu rancor extirpar toda a inveja que jaz em meu peito e a
tua voracidade explodir em taras que haverão de suprir os meus desejos mais
ignóbeis e saciar as minhas pulsões mais abjetas.
Deste lado da tela, sentirei os teus sentimentos e comungarei as tuas
emoções, vendo-te virar pelo avesso nesse zoológico de luxo, exposto à
multidão como carne no açougue, a engordar no balcão do voyeurismo a gorda
soma dos teus patrocinadores.
Em ti livrar-me-ei de todo ideal que não seja fazer da vida um jogo de
entretenimentos, a sedução epidérmica como sucedâneo de quem não atinge as
profundezas do amor, vendo-te representar a ti mesmo sob os aplausos
invejosos de meu olhar sequioso, preso ao teu desempenho huit-clos.
Aprisionarei a tua vida em meu olhar, torna-me-ei teu carcereiro
eletrônico, decidindo o teu presente e o teu futuro, absolvendo-te ou
condenando-te, juiz supremo que se ignora refém do próprio equívoco.
Inebriado com as tuas loucuras, te elegerei objeto supremo de minha
admiração, deixando-me devorar pelo teu sucesso, do qual farei tema de
todas as minhas conversas.
À espera de que os corvos venham devorar o meu coração, e agora que a
nossa história foi para os quintos dos infernos, quero ser consumido e
consumado por ti, arrancando de meus olhos todas as escamas, até que eu
possa ver também ao vivo, na busca desenfreada de audiência, o marido
espancar a mulher; o filho estuprar a mãe; o pai assassinar a filha; enfim,
o horror, pois sei que o show não pode parar e que o seu limite é não
ter limites.
* Frei Betto é escritor, assessor de movimentos sociais e pastorais, e
autor do romance "Alucinado Som de Tuba" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/105596?language=en
Del mismo autor
- Homenaje a Paulo Freire en el centenario de su nacimiento 14/09/2021
- Homenagem a Paulo Freire em seu centenário de nascimento 08/09/2021
- FSM: de espaço aberto a espaço de acção 04/08/2020
- WSF: from an open space to a space for action 04/08/2020
- FSM : d'un espace ouvert à un espace d'action 04/08/2020
- FSM: de espacio abierto a espacio de acción 04/08/2020
- Ética em tempos de pandemia 27/07/2020
- Carta a amigos y amigas del exterior 20/07/2020
- Carta aos amigos e amigas do exterior 20/07/2020
- Direito à alimentação saudável 09/07/2020
Clasificado en
Clasificado en:
Comunicación
- Jorge Majfud 29/03/2022
- Sergio Ferrari 21/03/2022
- Sergio Ferrari 21/03/2022
- Vijay Prashad 03/03/2022
- Anish R M 02/02/2022