Aprender com as águias
23/02/2002
- Opinión
Entre as aves, a águia é a que vive mais, cerca de 70 anos. Mas para
atingir esta idade, aos 40 anos ela deve tomar uma difícil decisão:
nascer de novo.
Aos 40 anos suas unhas ficam compridas e flexíveis, dificultando
agarrar as presas com as quais se alimenta. O bico alongado e
pontiagudo se curva. As asas, envelhecidas e pesadas, dobram-se sobre
o peito, impedindo-a de empreender vôos ágeis e velozes.
Restam à águia duas alternativas: morrer ou passar por uma dura
prova, ao longo de 150 dias. Esta prova consiste em voar para o cume
de uma montanha e abrigar-se num ninho cravado na pedra. Ali, ela
bate o velho bico contra a pedra, até quebrá-lo. Espera, então,
crescer o novo bico, até que possa arrancar as suas unhas. Quando as
novas unhas despontam, a águia extirpa as velhas penas e, após cinco
meses, crescidas as novas penas, ela atira-se renovada ao vôo, pronta
para viver mais 30 anos.
Ao longo da existência, a possibilidade de nossa sobrevida depende,
muitas vezes, de seguir o exemplo da águia. Quem se entrega, abatido,
ao peso do sofrimento e das dificuldades, tende a abreviar seus dias.
Deixa de viver como quem voa e passa a sobreviver como um réptil que
rasteja.
Reaprender a voar é ousar recolher-se para começar de novo. Eis a
sabedoria de todas as religiões tradicionais ao exigir de seus
noviços um tempo de reclusão. O mesmo ocorre em muitas nações
indígenas, quando o jovem, para ser considerado adulto, é recolhido a
uma cabana isolada, onde o xamã o submete a provas e o introduz em
conhecimentos específicos.
Mas é preciso voar até a montanha. De cima, vê-se melhor. Talvez por
isso Deus, ao criar o ser humano, tenha colocado a cabeça acima do
coração. Ver com as emoções é correr o risco de desfigurar os
desenhos. Os contornos mostram-se muito mais nítidos quando
observados com serenidade.
E saber esperar. Primeiro, ousar perder o que envelheceu: o bico, as
unhas, as penas. Despojar-se do que atravanca os nossos passos.
Segundo, aguardar pacientemente o tempo da maturação. Enfim, dar o
salto pascal, abrir as asas para a vida e, sem medo, empreender o vôo
rumo a novos horizontes.
Ao decidir ingressar na vida religiosa, passei o ano de 1965 recluso
no convento dominicano da Serra, no alto da rua do Ouro, em Belo
Horizonte. Sofri muito o contraste com a vida que deixara no Rio,
mergulhado no ativismo estudantil e na efervescência de um Brasil
que, como nação, se preparava para o segundo vôo da águia. Tudo
adjetivava-se novo: o cinema novo, a bossa nova, a nova literatura
etc., até que o golpe militar de 1964 abateu a ave em pleno vôo. O
noviciado, porém, levou-me ao mais profundo encontro comigo mesmo e
com Deus. Ainda hoje guardo a certeza de que aquele foi um dos anos
mais felizes de minha vida.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de
"Mística e Espiritualidade" (Rocco), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/105653?language=es
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