O grande deus
20/03/2003
- Opinión
Ele é objeto da crença de milhões de mortais. Transcende a nossa
realidade fugaz, dotado que é de onipresença, onipotência e
onisciência. Sabe o que nos convém, ainda que a nossa parca
compreensão não capte seus mistérios. Ele governa as nossas vidas e
faz o feio ficar belo, o velho novo, o caro barato. Transforma o
bandido em autoridade venerável; o especulador em mestre sagaz; o
agiota em senhor de direitos. Por ser sagrado, não suporta a
intervenção do Estado, um poder profano, nem admite dúvidas ou
críticas, pois é digno de fé. Ele se irrita com os nossos erros,
reage mal aos nossos equívocos e se compraz quando damos ouvidos a
seus sacerdotes. Suscetível, por vezes fica sumamente nervoso diante
de acontecimentos que lhe desagradam ou, pela voz de seus profetas,
manifesta tranqüilidade quando os ventos sopram a seu favor.
Ele é o caminho, a verdade e a vida. Seu poder é legitimado por
milhares de oráculos que, especializados em sua teologia, tratam de
explicar, numa linguagem hermética, como ele é, age, abençoa ou
amaldiçoa, oscila ou revela-se estável.
Insaciável, ele se alimenta de guerras e da fome alheia, manipula a
economia dos povos do mundo, transporta fortunas para além das
fronteiras, demonstra um apetite glutão por riquezas alheias.
Fora dele não há salvação. Ele se arvora em única porta de salvação e
felicidade perpétua. Só ele, em sua infinita sabedoria, nos aponta o
caminho do céu. Aqueles que nele não confiam são condenados ao
desterro da pobreza, à exclusão de uma vida infernal, ao estigma do
fracasso e da despossessão.
Não se pode vê-lo. Mas está presente em toda parte: no sorvete da
criança e na flor oferecida na esquina; no avião do banqueiro e no
punhado de farinha com que o camponês engana a fome; nas relações
empresariais e conjugais; nos tratados diplomáticos e nos funerais.
Nele, por ele e com ele as coisas adquirem valor; as pessoas,
dignidade social; as comunicações, brilho, e o que é mentira se
transubstancia em verdade, o que é errado, em correto, o que é mal,
em bem.
Ele conduz os nossos passos, conhece as nossas mais íntimas
aspirações, promete saciar os nossos mais profundos desejos. Cheio de
artimanhas, ele nos cerca por toda parte, e seu olhos publicitários
jamais nos abandonam, seja na esquina, na traseira do ônibus, no
programa de TV, na sacola de compras, nas páginas dos jornais.
Ele é o deus Mercado, frente ao qual todos os joelhos neoliberais se
dobram, incensando-o com a alta dos juros, a evasão de divisas, a
dependência externa. Seus templos possuem portas eletronicamente
controladas e são protegidos pela vigilância permanente de guardas.
Seus missionários fiscalizam minuciosamente as contas dos países,
determinam medidas impopulares, salvam contas ainda que com o
sacrifício de vidas. Essas são imoladas em seu altar de ouro todas as
vezes que o seu poder é ameaçado.
Se contrariado, ele faz quebrar famílias, empresas, nações.
Antievangélico, despreza a solidariedade e exalta a competitividade;
repudia a partilha e canoniza a ganância; humilha a pobreza e
consagra a riqueza como supremo bem. Idolatrado, cerca-se de
discípulos fiéis que jamais logram ver o mundo com os olhos da
compaixão e da justiça. Seus acólitos tremem diante da oscilação de
seus humores e mantêm presunçosa indiferença frente ao drama de
multidões famintas.
Há muitos séculos, numa cidade do Oriente Médio, ele condenou à morte
um homem que ousou, com chicote à mão, derrubar os que conspurcavam o
templo com o tilintar de moedas que, a seus ouvidos, soavam como
deleitável música. Levou à cruz um Deus no qual ele, hoje, professa
confiança, desde que não interfira em seus negócios. Aliás, agora ele
professa em vão o nome desse Deus, para encobrir e legitimar os
horrores que pratica.
* Frei Betto é escritor, autor de "O Vencedor" (Ática), entre outros
livros.
https://www.alainet.org/de/node/107138?language=es
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