Desafios à nova esquerda
30/04/2003
- Opinión
O ideário socialista ruiu, vítima de sua pragmática
identificação com o progresso material. Lenin enfatizou o
socialismo como sinônimo de eletrificação. Os partidos
comunistas no poder empenharam-se em desenvolver a infra-
estrutura de seus respectivos países, porém sem a mesma
atenção à formação da sociedade civil, democratização da
estrutura política e ampliação do mercado varejista.
Socialismo deve rimar com emancipação humana, soberania
nacional e, sobretudo, felicidade pessoal. No
capitalismo, que exalta a competitividade, suporta-se a
lógica de que a felicidade de um decorre da infelicidade
de muitos. É outra vertente ética, enraizada na
solidariedade, que torna o socialismo radicalmente
diferente. "De cada um segundo a sua capacidade, a cada
um segundo a sua necessidade".
A esquerda latino-americana é desafiada, agora, a tornar-
se menos leninista e mais guevarista. A autocracia
partidária cede lugar às emulações morais. Mais leitura
de Os manuscritos econômico-filosóficos de Marx e menos
de O capital.
A ideologia progressista não pode mais ser reduzida a uma
teoria econômica de natureza positivista. O socialismo
não pode ser projetado como um capitalismo sem
capitalistas. O que significa que não pode ser pautado
por padrões de tecnologia e modelos de consumo.
O resgate da ética, a transparência no trato com a coisa
pública, a tolerância nas relações e a intransigência nos
princípios, o compromisso efetivo e afetivo com os
setores mais carentes da população - eis a condição para
uma esquerda que pretenda recuperar sua credibilidade e
seu poder de humanização da sociedade.
O peruano José Carlos Mariátegui, que latinoamericanizou
o marxismo, denunciou em seus escritos o culto
supersticioso da idéia de progresso. Interessado em
superar o positivismo e o determinismo, ele propôs um
socialismo como "criação heróica" a partir do povo, tendo
ao centro, na América Latina, a questão indígena, o
universo camponês, a multidão de pobres, e não o
prometeico proletariado industrial. Em suma, mais atenção
ao povo e menos rigor na ótica de classe.
Na atual conjuntura latino-americana, fica descartada a
estratégia libertadora centrada na proposta de assalto ao
Estado. A Nicarágua sandinista comprovou que, devido à
internacionalização do aparelho repressivo, monitorado
pelos EUA, antes de apelar para a idéia de força é
preciso recorrer à força das idéias. A eleição de Lula é
expressão desse novo caminho.
Não se conquista o aparelho estatal sem antes estar
consolidado o apoio de corações e mentes da maioria da
população. Não se pode subestimar o sujeito popular:
jovens, crentes, donas-de-casa etc. Esses setores não
podem ser considerados mera massa eleitoral. Se a
esquerda não se livrar do sectarismo e do dogmatismo,
permanecerá isolada em suas purezas e certezas, sem
condições de elaborar um novo senso comum popular.
Nem sempre a esquerda partidarizada reconheceu o merecido
valor das práticas populares alternativas: lutas por
sobrevivência e resitência; denúncias; conquista de
direitos; preservação do meio ambiente; relações de
genero; combate à discriminação racial e/ou étnica etc.
Inútil dar um passo atrás e fixar-se na utopia do
controle do Estado como pré-condição para transformar a
sociedade. É preciso, antes, transformar a sociedade
através de conquistas dos movimentos sociais, e de gestos
e símbolos que façam emergir as raízes antipopulares do
modelo neoliberal. Combinar as contradições de práticas
cotidianas (empobrecimento progressivo da classe média,
desemprego, disseminação das drogas) com as grandes
estratégias políticas.
É fazer concessão à lógica burguesa admitir que o Estado
é o único lugar onde reside o poder. Este se alarga pela
sociedade civil, os movimentos populares, as ONGs, a
esfera da arte e da cultura, que incutem novos modos de
pensar, de sentir e de agir, modificando valores e
representações ideológicas, inclusive religiosas.
"Não queremos conquistar o mundo, mas torná-lo novo",
proclamam os zapatistas. Hoje, a luta não é de uma classe
contra a outra, mas de toda a sociedade contra um modelo
perverso que faz da acumulação da riqueza a única razão
de viver. A luta é da humanização contra a desumanização,
da solidariedade contra a alienação, da vida contra a
morte.
A crise da esquerda não resulta apenas da queda do Muro
de Berlim. É também uma crise teórica e prática. Teórica,
de quem enfrenta o desafio de um socialismo sem
stalinismo, sem dogmatismo, sem sacralização de líderes e
estruturas políticas. E prática, de quem sabe que não há
saída sem retomar o trabalho de base, reinventar a
estrutura sindical, reativar o movimento estudantil,
incluir em sua pauta as questões indígenas, raciais,
feministas e ecológicas.
Neste mundo sem esperança, só a imaginação e a
critividade da esquerda são capazes de livrar a juventude
da inércia, a classe média do desalento, os excluídos do
conformismo. Isso requer uma ideologia que resgate a
ética humanista do socialismo, abandonando toda
interpretação escolástica da realidade e, sobretudo, toda
atitude que, em nome do combate à burguesia, faz a
esquerda agir mimeticamente como burguesa, incensando
vaidades, sonegando informações sobre recursos
financeiros, reforçando a antropofagia de grupos e
tendências que se satisfazem em morder uns aos outros.
O pólo de referência das esquerdas, em torno do qual
devem se unir, só pode ser um: os direitos dos pobres.
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Emir
Sader, de "Contraversões - civilização ou barbárie na
virada do século" (Boitempo), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/107435?language=es
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