Cobranças
26/06/2003
- Opinión
Pior que cobrança de credores é a de quem se sente lesado
em seus sentimentos. Devido à minha ontológica
insuficiência, projeto nos outros as minhas ansiedades,
expectativas e esperanças. Isso é normal, pois o
mimetismo é inerente à educação. Busco no outro - o pai,
o amigo, Deus - aquilo que não sou e nem tenho e, no
entanto, faz com que o brilho do outro ofusque o meu.
Quem sabe estar próximo a ele embeba-me do que o torna
admirável a meus olhos.
Da projeção, no início sutil, inconsciente, disfarçada de
gratuidade, emerge a identificação. Acho que o outro deve
fazer de mim o centro de sua atenção, já que o promovi a
alvo da minha. Quero a reciprocidade, o reconhecimento, o
movimento dele em minha direção.
Instaura-se, pois, de modo quase imperceptível, o
processo de cobrança. Nem sequer desconfio de que o
outro não tem comigo a mesma identificação que tenho com
ele. Não sou o alvo da atenção dele. Mas como ele é o da
minha, prefiro não admitir o contraste, abafando assim o
que poderia irromper como um princípio de ciúme.
Da identificação, passo à apropriação simbólica do outro.
A amizade dele me agrada, infla o meu ego e, portanto,
devo cuidar de tê-lo sempre por perto. Inicia-se o jogo
de sedução: agrados, elogios, presentes. Como a aranha,
armo a teia para enredá-lo. Quero-o sob o meu controle.
Quanto mais me julgo próximo dele, mais me cubro com a
ilusão de que ele tem por mim os mesmos sentimentos que
nutro por ele. É isso que me faz acumular virtualmente,
na contabilidade de minhas emoções, um ativo que, na
verdade, se traduz na ilusão de que a minha carência
deixou de ser um profundo buraco pelo simples fato de o
outro tapá-la com uma pele delgada e frágil - a
delicadeza de sua boa educação. Tal cegueira faz com que
eu confunda gentileza com carinho, sorriso com amizade,
atenção com dedicação.
Um dia as escamas caem dos olhos. Descobre-se que o outro
tem mais afinidades com terceiros, reserva o seu afeto
mais profundo a outros, sente-se mais à vontade com
outras companhias. Vem, então, a mágoa, a ferida, a dor
e, com elas, a cobrança.
Como um vulcão, a cobrança tem matizes e fases. Primeiro,
a fumaça sob a qual me escondo, fazendo-me de vítima. Em
seguida, a larva das palavras ferinas, da agressão, da
rejeição, como se agora eu impusesse a ele mesma
distância que, afinal, descobri que ele mantém entre nós.
Depois, a explosão, o ódio, a injúria. Vem à tona o
débito infinito. Ele me deve. Ele roubou parte de mim e
está obrigado a devolvê-la. Como não posso arrancar um
pedaço dele, faço-o moralmente, destruindo a sua boa
fama, minando as suas amizades, clamando quão mau-caráter
e mostruoso ele é.
Embora nada disso passe pela cabeça e pelos sentimentos
dele, e eu seja a única vítima de mim mesmo, torno-me
credor de uma dívida que insisto em obrigá-lo a pagar.
Cobro, cobro, cobro, com toda a força da memória
ressentida. Cobro de mim mesmo a incapacidade de aceitar
o outro como ele é e não como eu gostaria que fosse.
Se ele é uma pessoa pública - atleta, artista, político -
esforço-me por obter ao menos um sinal de que não sou
totalmente ignorado por ele: um abraço, uma assinatura,
uma foto. Se me escapa a sensatez, desperto o canibal que
me habita e procuro devorar o objeto de meu apreço, agora
transformado em possessão, como o fã que matou John
Lennon. Se não é meu, que não seja de mais ninguém. A
admiração transmuta-se em inveja - que é a tristeza de
não ser ou ter o que o outro é ou tem. A profunda
frustração de não desfrutar dos mesmos bens que, aos meus
olhos, faz do outro uma pessoa vitoriosa e feliz.
Para se evitar a cobrança, só há um antídoto: a humildade
de ser o que se é, sabendo perder e preservar a auto-
estima.
* Frei Betto é escritor, autor de "O Vencedor" (Ática),
entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/107779?language=es
Del mismo autor
- Homenaje a Paulo Freire en el centenario de su nacimiento 14/09/2021
- Homenagem a Paulo Freire em seu centenário de nascimento 08/09/2021
- FSM: de espaço aberto a espaço de acção 04/08/2020
- WSF: from an open space to a space for action 04/08/2020
- FSM : d'un espace ouvert à un espace d'action 04/08/2020
- FSM: de espacio abierto a espacio de acción 04/08/2020
- Ética em tempos de pandemia 27/07/2020
- Carta a amigos y amigas del exterior 20/07/2020
- Carta aos amigos e amigas do exterior 20/07/2020
- Direito à alimentação saudável 09/07/2020