Bem-aventurança em Bagdad
31/08/2003
- Opinión
Houve um momento em que os olhos do mundo inteiro se voltaram para o Iraque com a secreta esperança de que a paz ainda seria possível. O país destruído pelas bombas da guerra pareceu respirar com novo alento. As imagens de crianças, mulheres e jovens amputados, feridos e mortos pela violência das bombas e dos ataques homicidas e suicidas pareciam prestes a pertencer a um passado que não mais voltaria. A Organização das Nações Unidas parecia haver encontrado o homem certo para reconstruir o país em escombros. O anúncio da chegada do Embaixador Sérgio Vieira de Mello, alto Comissário das Nações Unidas, trazia consigo um passado carregado de credibilidade. Depois do trabalho feito em Kosovo, Sérgio tornou-se sobretudo conhecido e respeitado no Timor Leste, levando a bom termo a difícil transição do país então sob o violento tacão das milícias de Jacarta até sua independência, desempenhando papel fundamental no estabelecimento de suas bases institucionais . A chegada do Embaixador a Bagdá parecia garantir o estabelecimento de um governo democrático no Iraque, assim como trazia esperanças de melhorias na caótica situação em que se encontrava o país. Sua presença permitia igualmente esperar que viesse finalmente à luz a violação de direitos humanos, a pilhagem e o assalto às reservas naturais realizado pelas tropas que ainda lá permaneciam. O ataque suicida de um caminhão-bomba repleto de explosivos acabou com a vida idealista e heróica do Embaixador que nunca recuara diante de missões difíceis. Terminou também - ao menos momentaneamente - com a esperança do sofrido povo iraquiano de ver seu país caminhar rumo à paz tão desejada. Porém, deixou um legado insubstituível para aqueles e aquelas que souberem ler os acontecimentos históricos sob uma outra ótica que transcende o nível mais epidérmico da indignação e da dor. Sérgio Vieira de Mello, por sua vida e morte, dá testemunho ao mundo do que seja a missão de alguém que resolve dedicar sua existência à construção da paz. Em termos bíblicos, o "pacífico" ou "construtor da paz" não se identifica ao "irênico", ou seja, àquele que, lesado injustamente, não se perturba mas permanece calmo, confiando apenas em Deus. Trata-se, ao contrário, de conduta essencialmente comunitária ou social, de uma caridade que se espalha tecendo os laços entre os membros de determinada sociedade e restaurando também aqueles que por infelicidade se tiverem rompido. O Novo Testamento mostra que esta obra é antes de mais nada de Deus, do "Deus da paz", cuja promessa consumada em Jesus Cristo compreende a pacificação do universo e a reconciliação entre todos os povos. O exemplo daqueles que constroem a paz é colocado pelos Evangelhos em termos de uma bem-aventurança, ou seja, de uma vivência da verdadeira felicidade. As pessoas divididas por uma querela são infelizes. É preciso estender-lhes a mão, ajudá-las a se reconciliarem, a se reconstruírem. Não se trata, portanto, de uma atitude meramente afetiva, essa dos construtores da paz e dos pacíficos; mas é algo ativo, que procura eficazmente o bem do outro e da coletividade. Aqueles que assim constroem a paz diz o Evangelho - "serão chamados filhos de Deus", ou seja "eleitos". Escolhidos para viver uma situação e dar um testemunho cujo protótipo é o próprio JesusŠ Enquanto prática concreta da justiça e do direito para com aqueles que estão privados deste bem fundamental para a vida, a ação dos construtores da paz reflete a conduta misericordiosa de Deus em relação aos homens. É por causa disto que a bem-aventurança proclamada no Evangelho atesta que alguém que constrói a paz será chamado filho de Deus. Porque efetivamente dá sua vida e entrega o melhor de si a fim de que a paz possa reinar, restaurando as relações rompidas e sanando as feridas geradas pela violência. Trata-se de todo o contrário da concepção de poder soberano que permitiu durante longo tempo aos reis, imperadores e ditadores de toda espécie se autoproclamarem filhos de Deus, assegurando a paz a seus súditos. A morte de Sérgio, com toda a carga dolorosa que traz consigo, permitiu-nos contemplar nos últimos dias qual o verdadeiro caminho para o fim da violência. Não é certamente o de fazê-la crescer com represálias e retaliações. Muito mais o de ir ao seu encontro com coragem e lucidez, propondo-se a trabalhar com o melhor de suas energias para tornar possível a restauração da vida feita em pedaços pela guerra e a barbárie. Neste movimento e neste caminho, é possível que a mesma violência à qual se quer pôr fim faça sentir seu peso assassino e transforme o construtor da paz em mais uma de suas vítimas. Assim tem sido muitas vezes na história da humanidade: Jesus de Nazaré, Gandhi e tantos outros. E, recentemente, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que desde os escombros da sede da ONU em Bagdá iluminou o resto do mundo, encarnando em seu corpo destroçado pelas bombas a bem-aventurança dos construtores da paz, e pode ser reconhecido e chamado filho de Deus. * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga.
https://www.alainet.org/de/node/108271?language=en
Del mismo autor
- Neto 114 14/08/2014
- Igreja profética em memória sombria 27/03/2014
- Sem sepultura 16/10/2013
- Papa Francisco: um pecador perdoado 26/09/2013
- Francisco e Gustavo: nova aurora para a teologia 22/09/2013
- La Moneda e as Torres Gêmeas: aniversário re-cordado 12/09/2013
- Gato e rato 08/09/2013
- Médicos cubanos: por que tanta gritaria? 29/08/2013
- A homilia do Papa em Aparecida e as três virtudes teologais 25/07/2013
- Realidade das ruas e euforia enganosa 26/06/2013