O perdão: caminho da paz
14/01/2004
- Opinión
A esta altura, creio que não há quase ninguém que não tenha visto o excelente e instigante filme do diretor canadense Denys Arcand "Invasões bárbaras". Realização cinematográfica da maior qualidade, apresenta igualmente riquíssimo material para reflexão sobre vários aspectos da vida neste mundo moderno e pós-moderno. Passam por sua câmera problemas sociais, afetivos, questionamentos vitais, situações complexas, enfim, uma vasta gama de sentimentos, dores e alegrias humanas em dinâmica interação. Em uma das muitas inesquecíveis cenas, aparece o personagem Remy, doente terminal de câncer, conversando com a ministra da Eucaristia que o visita freqüentemente em um hospital de primeiro mundo que se parece muito aos nossos do INPS. Abaladíssimo interiormente pela doença que o consome, Remy lança ao rosto de sua interlocutora palavras amargas. Como professor de história que é, revolta-se contra os estereótipos e falácias que sempre fizeram a humanidade crer que os genocídios são apenas aqueles narrados pela história oficial. Contestando que o maior genocídio do mundo tenha sido a segunda guerra mundial, Remy evoca o massacre dos índigenas em toda a América, do Norte e do Sul, executado pelo projeto colonial, em parceria com a religião institucional. Em meio a seu drama pessoal, emerge nele com fúria e violência o vigor dos antigos dias de cátedra e militância política. Lança dardos envenenados contra todas as instituições que sua língua encontra pelo caminho, inclusive a Igreja Católica. Com isso, deseja e pretende agredir também a mulher que, com incansável paciência e sem nenhum ranço de sacristia, o visita diariamente, procurando animá-lo e ajudá-lo a viver sua dolorosa situação. O quadro que pinta não pode ser mais negativo. Nada mais resiste em pé, nada vale a pena, a história da humanidade é uma sucessão de lamentáveis erros. O desespero do doente que se defronta com a morte próxima e a ausência de futuro e esperança é projetado no diagnóstico sombrio que faz do futuro do mundo. É quando Constança, que o ouve atentamente, pronuncia uma frase que faz calar o ódio que lhe sai da boca: "Se é tudo tão horrível, se tudo não foi senão uma série de monstruosidades, tem que haver alguém que possa nos perdoar." Remy não responde a Constança. E isso não importa muito. Pois não é só a ele que ela se dirige. Por sua boca, é Denys Arcand que interpela os espectadores de seu filme, colocando à prova sua fé na possibilidade do perdão. Parece-me que aí se encontra uma rica e fecunda pista para as possibilidades da paz hoje. Uma paz verdadeira não pode ser construída apenas pretendendo fechar os olhos ou ignorar as violências que a cada dia fazem vários milhares de vítimas. Genocídios menores ou maiores (e a quantidade importa muito pouco quando disso se trata) aí estão os massacres diários nas grandes cidades brasileiras; a chacina que continua acontecendo do outro lado do mundo, mas não tão longe de nós; os chefes das grandes potências fazendo discursos e propostas de uma política que só tem trazido à humanidade mais morticínio e sofrimento. E segue a vida sempre mais ameaçada, atingindo cada vez mais crianças, jovens, mulheres, dizimando o futuro da humanidade, do mundo, da criação. Diante disso só o perdão tem poder recriador. O perdão que, filho dileto do amor, reconhece o mal feito, mas escolhe não interromper o gesto doador. Continua, persiste, per-doa: persiste na doação. Neste início de ano, quando acabamos de celebrar o Dia Mundial da Paz, a profissão de fé de Constança nos convida a manter acesa a chama da esperança. Quando tudo parecer perdido; quando tudo se visibilizar apenas como um mar de injustiça, violência, crime e calamidade; quando todas as razões para esperar estiverem esgotadas, importa crer que o perdão é possível. Mesmo que não encontremos mais em nós sua fonte. Mesmo que estejamos ressequidos de todo de um amor que já não mais experimentamos e no qual não mais cremos. Importa esperar que, justamente por isso, existe Alguém que tem poder para perdoar, para recriar, para dos ossos secos fazer nova vida, do deserto jardim e, face a face com a morte, coragem nova para viver mais plenamente. Alguém que é a fonte de todo perdão e portanto da paz verdadeira. * Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga. O NOSSO SITE - wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape.
https://www.alainet.org/de/node/109087?language=en
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