Assim é a política
04/02/2004
- Opinión
Assim é a política: horizontes de sonhos para os quais se caminha
sob o peso das bolas de ferro presas ao tornozelo. Não há rotas
lineares; todas são labirínticas, acidentadas. Em cada curva, uma
surpresa, obrigando o viajante a mudar de ritmo e refazer seu mapa.
Nas costas, a sacola atulhada de vaidades intransponíveis,
maledicências, frituras e bajulações desmedidas.
Nela se ingressa sem passar pela prova da competência, nem se exige
atestado de integridade moral e, no caldeirão dos eleitos, misturam-
se honestos e safados, probos e corruptos.
Financiada pelo contribuinte, a política administra recursos que bem
podem ser canalizados para favorecer os direitos da maioria, ou
desviados para engordar contas escusas, atividades ilegais, caixas
de campanhas ou mordomias injustificáveis. Ladrões da bolsa pública
não costumam arrombar o cofre da legislação. Conhecem o seu segredo
e, assim, julgam-se inocentes por enfiarem a mão na brecha percebida
entre o emaranhado de leis.
Assim é a política: discursa enfatizando o interesse público, mas o
orador tende a pensar primeiro em seu alpinismo rumo ao cume do
poder. Como a escalada é longa, difícil e perigosa, ele aprende a
fazer concessões, abrir mão de princípios, enveredar-se por atalhos
suspeitos, reinterpretar suas antigas convicções, desde que não
retroceda.
A política não é um campo aberto, no qual o sol destaca frutos e
flores. É um cipoal sobre um pântano. Qualquer passo em falso, a
queda pode ser fatal. Nem é a política o reino maniqueísta do claro
e escuro, certo e errado, bom e mau. Tudo se mescla, as cores se
misturam, as posições são flexíveis; as opiniões, elásticas. O que é
hoje pode não ser amanhã. O que se diz agora não é necessariamente o
que se fará depois. O vidente de ontem pode aparecer, hoje, como um
cego desprovido de tato.
Assim é a política: uma dança em que cada bailarino escuta um ritmo
diferente. Uma orquestra em que cada instrumento toca uma música
distinta. Um coro em que cada cantor entoa segundo sua própria
conveniência.
A política é o resultado da sociedade que a produz e, em seu
espelho, reflete todas as contradições. E ainda que as estruturas
sociais fossem justas, a política continuaria a ser o efeito dos
defeitos do coração e dos desvarios da razão - que não são poucos,
enquanto o ser humano não for capaz de reinventar a si mesmo.
Assim é a política: entre tanto esterco, um diamante lapidado, um
administrador eticamente ousado, um parlamentar que perde o mandato
mas não a moral. Mas nela também há lugar para o jogo de cena, a
mentira deslavada e as lágrimas de crocodilo.
A política é uma senhora sisuda que se julga bela e sedutora, acima
de qualquer juízo. Irrita-se quando a criticam. Odeia cobranças. Mas
mendiga, em cada esquina, reconhecimento e elogios. Alimenta-se da
mesma ração de Narciso.
Assim é a política: uma igreja em que todos se julgam com vocação
para papa; uma seita em que todos se acham profetas; um púlpito em
que todos proferem vaticínios. Mas onde as palavras tardam em se
transformar em atos, e as idéias e projetos, em realizações. São
freqüentes, entretanto, as acusações de heresia, as excomunhões, as
reincidências no pecado. E como os degraus da conveniência, rumo ao
ápice do poder, são mais lapidados que as escarpas dos princípios,
não são raros os arrependimentos, a volta à grei, o exorcismo de
antigos propósitos.
Assim é a política: contraria as leis da Física, pois nela dois
corpos ocupam o mesmo espaço, e o quente é frio e o frio é quente. E
também da Geometria, pois duas paralelas se encontram bem antes do
infinito. O que hoje atrai, amanhã repele; o que agora aproxima,
depois distancia. E toda vez que o sol sobe, as estrelas vão atrás.
Insaciadas com o brilho próprio, procuram, como a lua, também
refletir o dele.
A política é, apesar de tudo, o único remédio contra os males da
coletividade. Ainda não se inventou nenhuma ferramenta que, como
ela, é capaz de fazer da riqueza de uns poucos a pobreza de muitos
ou, ao contrário, da felicidade de muitos o aborto da ambição de
poucos.
Sabe-se que, entre os regimes políticos, a democracia é o mal menor.
Será o bem maior quando deixar de ser representativa para se tornar
participativa. E os três poderes, despidos de suas vaidades, viverem
em harmoniosa comunhão com o povo. Então ela gerará a única filha
legítima que merece o útero fecundado pela vontade popular: a vida,
e vida para todos, em plenitude, como enfatizou Jesus - que, aliás,
foi vítima da política bastarda, essa que ainda predomina em nossos
tempos.
* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto - Autobiografia Escolar"
(Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/109346?language=es
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