Amor virtual

13/02/2004
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A Internet modifica hábitos e costumes, como toda inovação tecnológica. A televisão, apresentada pela primeira vez em 1939, provocou, na edição de 18 de abril daquele ano, curiosa reação do "New York Times", prevendo-lhe o fracasso. Segundo o jornal, a família americana não teria paciência suficiente para largar seus afazeres e ficar sentada diante do aparelhoŠ O fato é que o avanço tecnológico nos exige cada vez menos o corpo, condenando-nos à vida sedentária que, aos poucos, compromete-nos a saúde. Se já não há necessidade de andar a pé, graças aos veículos automotores; subir escadas, graças a elevadores e escadas rolantes; fazer força para, por exemplo, carregar baldes de água, graças a torneiras e chuveiros; vamos desvitalizando o organismo, a menos que haja disciplina de exercitá-lo na ginástica ou no esporte. O correio eletrônico agiliza a comunicação, embora ameace o nosso domínio da linguagem. Na mensagem por e-mail o texto curto requer poucas frases, telegráficas. E nos distancia da arte da correspondência, na qual as cartas, caligrafadas, exigiam do remetente atenção à sintaxe e à concordância. Lembro de meu tio Jacy Brício, pré-internético. Desaguou todo o seu talento literário em cartas primorosas. Tivesse computador, talvez se alinhasse àqueles que, hoje, reduzem o idioma à braquigrafia, que tudo abrevia. Como nós, mineiros, fizemos com o pronome você: de vossa mercê, passamos para vossemecê, vossência, vosmecê, você, ocê, cê e, num demora muito, usaremos só o acento circunflexo! O e-mail tende a empobrecer o vernáculo. Introduz um dialeto, um código secreto para quem não é da tribo. Diante da queixa do namorado, a adolescente digitou: "E quico?" Tradução: "E o que tenho eu com isso?" Todos os internautas sabem que têm, no computador, a mais completa e detalhada enciclopédia de todos os tempos, de matar Diderot de inveja. Aí reside o perigo. O usuário já não se empenha em ler e aprender. Basta-lhe uma seqüência de digitação para informar-se de quantas células há no organismo humano ou onde fica a Lapônia. O verbo é preciso: informar-se. Diferente de assimilar cultura. Outrora, lia-se, pesquisava-se, escrevia-se. Agora, o atalho eletrônico tende a nos emburrecer. Culto é o meu computador, com quem convive a minha ilusão de que ele domina todo o conhecimento humano. Do qual retenho quase nada. Posso até imprimir a informação. O que é bem diferente de impregnar-me de formação. Na rede, posso capturar tudo que se sabe sobre as obras de Dostoievski ou a música de Vivaldi. Mas toda a informação que se possa obter não chega aos pés do deleite de ler o romancista russo ou ouvir o compositor italiano. Seria o mesmo que conhecer a química da água sem o prazer de um banho de cachoeiraŠ As salas de bate-papo da Internet atraem muitos corações solitários. E também devassos: pedófilos, tarados, adúlteros, e até um alemão que, literalmente, comeu um outro, depois que a vítima se ofereceu para saciar os instintos canibais daquele que, agora, foi condenado a apenas 8 anos e meio de prisão. E pensar que os europeus julgavam que canibalismo é coisa do Terceiro MundoŠ Conheço casos trágicos de amor virtual pela rede mundial de computadores, como o da médica brasileira que chegou a noivar, internauticamente, com um colombiano, após trocar, por correio, até roupas íntimas. Na hora de se conhecerem pessoalmente, para acertar o casamento, foi aquele jato de água friaŠ Um executivo de São Paulo, após meses de carícias eletrônicas, entremeadas de muita pornografia, marcou um encontro com a correspondente. Deparou-se com a própria filhaŠ No livro "O amante brasileiro", Betty Milan narra o episódio da mulher que, após meses de trocas eróticas com um pretendente baiano, ao desembarcar em Salvador, para conhecer o homem de sua vida, viu-se diante de uma mulherŠ Nada substitui a realidade. Mas é justamente ela que nos provoca fascínio e temor. Por isso é tão difícil dela se aproximar. No século XIII, meu confrade Tomás de Aquino respondeu a pergunta que Pilatos não obteve da boca de Jesus: "A verdade é a adequação da inteligência ao real". É tudo o que busca a psicanálise. E os místicos. Por isso, ainda que receosos, não há como resistir à tentação. Para nós, cristãos, o real é Deus. Em seu amor reside a plenitude. Como o caminho rumo ao real requer o enfrentamento do próprio ego, que grita alto, então nos cobrimos de ilusões, disfarces, máscaras. E via Internet o jogo de astúcias fica mais fácil para quem busca, avidamente, uma compensação às suas carências. É o amor virtual, que induz à intimidade, inclusive sexual, sem a fluência dos sentimentos, a inflexão de voz, o brilho do olhar. É comunicação sem comunhão, diáfora sem sinergia, atração sem contemplação. "Uma só carne e um só espírito", como sugere a primeira página da Bíblia, só olho no olho. Não há aparato eletrônico que preencha o coração humano. Pode aplacar frustrações, nutrir ilusões, saciar fantasias. Mas não conduz à realidade, cuja raiz é o amor. * Frei Betto é escritor, autor de "A Obra do Artista - uma visão holística do Universo" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/109408?language=es
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