Cisternas

01/03/2004
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A Igreja católica lançou em todo Brasil, na Quarta-Feira de Cinzas, a Campanha da Fraternidade, cujo lema é "Água, fonte de vida". Há fortes indícios científicos de que a vida nasceu no fundo dos mares. A descoberta de onze linhagens de micróbios fossilizados, espécie de algas azuis, em Marble Bar, na Austrália, em 1993, demonstra que eles datam do período Arqueano, há 3,5 bilhões de anos. Alguns se parecem às bactérias atuais e tudo indica que faziam a fotossíntese, o processo pelo qual os seres vivos aproveitam a luz do Sol para elaborar seus nutrientes. Nas profundezas marítimas não há luz do Sol nem plantas verdes. Ali, as criaturas buscam os orifícios que, como poros, exalam o calor da transpiração do magma no interior do planeta. Ao se encontrar com o basalto quente por baixo do solo marítimo, a água impregna-se de gás sulfídrico, aquele composto de enxofre com cheiro de ovo podre. Para o ser humano, o gás sulfídrico é letal, mas para as bactérias submarinas é um manjar dos deuses netunianos. Elas comem o sulfureto, processando-o, como as plantas fazem com a luz do Sol. O calor junto aos orifícios infra-oceânicos teria criado condições para a vida se desenvolver. No fundo dos mares, na infância de Gaia, todos os ingredientes da receita estavam presentes: hidrogênio, oxigênio, carbono, metano e amônia. E qual seria o ponto deste delicioso manjar - por vezes doce, muitas vezes salgado, amargo ou apimentado - chamado vida? A que temperatura deveria ser cozido na água? Até hoje ninguém conhece a receita em detalhes. É provável que o Grande Cozinheiro, cioso de seu talento, tenha guardado o segredo só para si. Sabe-se, porém, que o magma, a mais de 1.000°C, eleva a água que toca a 600°C. E à medida que parte da cordilheira submarina emergiu, como a Islândia, trouxe a vida à superfície, expondo-a aos olhos do Sol, cuja radiação ultravioleta é mortal. Se hoje ela suporta a superfície é porque a maior parte dos raios ultravioletas está bloqueada pelos óculos ray-ban do planeta, a camada de ozônio, que lhe dá proteção, já que o oxigênio livre resulta da fotossíntese. Portanto, tudo indica que a vida começou entre rochas aquecidas, no fundo dos mares. Nesse sentido, estaria com a razão Tales de Mileto que, no século VI a.C., defendeu que "a água é a causa material de todas as coisas". E podemos acrescentar: também espiritual, pois é o elemento utilizado no batismo e a matéria- prima do nosso corpo, da Terra, de boa parte da energia e de todas as beberagens litúrgicas. Uma vasta região do Brasil, o semi-árido nordestino (11 estados, 1 milhão de km2, mais de 24 milhões de habitantes), carece de água em quantidade suficiente. Durante décadas, o poder público pouco fez para enfrentar a estiagem. E muitos políticos criaram a "indústria da seca", obtendo votos graças à exploração de caminhões-pipas. Há mais de trinta anos, Nel, pedreiro de Simão Dias (SE), migrou para S. Paulo em busca de trabalho. Empregou-se numa firma de manutenção de piscinas. Foi então que, ao retornar ao Nordeste, teve a idéia de criar a mais revolucionária tecnologia de convivência com o semi-árido: a cisterna de placas de cimento, para captação de água da chuva. Nel descobriu que em nenhum país onde neva, como o Canadá, há um Departamento Nacional de Combate à Neve. Não se combate a neve. Aprende-se a conviver com ela. No entanto, havia no Brasil um Departamento Nacional de Obras Contra as SecasŠ Nel ensinou-nos que se convive com a seca e combate-se a sede. E não é verdade que São Pedro castigou o Nordeste com longos períodos de estiagem. Lá chove, mas em poucos dias. O segredo consiste em coletar essa água em cisternas e, assim, enfrentar os oito ou nove meses de estiagem. No ano que menos chove no Nordeste, cai água suficiente para encher a cisterna de 16 mil litros, o que permite a uma família de cinco pessoas enfrentar o período da seca. Em 1999, foi criada a ASA (Articulação do Semi-Árido Brasileiro), fórum que reúne mais de 700 entidades (sindicatos, ONGs, Igrejas, cooperativas, associações etc.) e desenvolve o P1MC - Programa Um Milhão de Cisternas (www.asabrasil.org.br). Em 2002, sugeri ao Fome Zero fazer parceria com a ASA para implantar o Sede Zero. Muitas institutições, como a Febraban, abraçaram o P1MC, o que permitiu, até agora, mobilizar 34.075 famílias, capacitar 23.849 em recursos hídricos, formar 1.789 pedreiros, e construir 26.537 cisternas em 533 municípios. Cada cisterna custa R$ 1.400,00. A invenção de Nel é simples: cerca-se o telhado da casa com uma calha, da qual desce um cano ligado à cisterna. No primeiro minuto de chuva, deixa-se a água lavar a atmosfera e o telhado. Logo, abre-se o conduto que leva a água do telhado à cisterna. Evita-se a contaminação utilizando água sanitária ou cloro. Essa água da cisterna liberta a família social, política e economicamente, pois serve para dar de beber aos animais da casa; livra crianças e mulheres da obrigação de carregar, por longos trajetos, água contaminada, permitindo-lhes estudar e trabalhar; aposenta caminhões-pipas e seus exploradores; e a água utilizada no banho e na limpeza das vasilhas é reutilizada para regar plantas, desde que jogada a dois ou três palmos de distância, de modo que a terra filtre os componentes químicos de detergente e sabão. As gerações futuras haverão de nos questionar por que disperdiçamos tanta água e deixamos a da chuva entupir ralos e bueiros. E se chovesse petróleo, o que faríamos? * Frei Betto é escritor, autor de "A Obra do Artista - uma visão holística do Universo" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/109499?language=es
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