O homem dos jornais

22/03/2004
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Era pontual. Todas as manhãs, soadas dez horas, quando a freguesia já refluíra, pois notícias é bom saboreá-las o mais cedo possível, o que explica muitos se dedicarem à leitura dos jornais tão logo saltam da cama, antes mesmo de lavar os dentes e tomar café, mas não era o caso dele, preferia a hora calma, depois que o enxame ávido de leitores já havia consumido, na banca de jornais, o mel do frescor do noticiário impresso. Postava-se ali bem do lado, de modo a não atrapalhar os movimentos de algum eventual freguês daquela hora morta da manhã, cuidando para que seu corpo não tapasse a capa das revistas expostas atrás, e entabulava meia-hora de papo com o jornaleiro, um homem de bigodes finos que demonstrava prazer em receber seu Veridiano, o melhor cliente. Veridiano só tardava na hora aos domingos, quando os leitores acordam mais tarde, prolongando o alvoroço em torno da banca até meio-dia. Aos domingos, Veridiano permanecia colado à banca na meia-hora que precede o toque monocórdio do badalo do sino da igreja, marcando uma hora. Então, como vão as coisas, indagava Veridiano todos os dias, a mesma pergunta com igual tom de voz. O jornaleiro esfregava os dedos no bigodinho fino, como se quisesse ajustá-lo sob as narinas, e sentado no tamborete, a descansar da labuta matutina, comentava o pouco que sabia, pois seja por preguiça mental, seja por falta de tempo, só tomava ciência das notícias de primeira página. É, parece que o governo não está conseguindo retomar o crescimento, suspirava o vendedor, com a mesma calma com que comentava que um carro-bomba matara mais de uma centena de pessoas em Bagdá. E o crime da Lagoinha?, provocava Veridiano, emendando a conversa de hoje com a de ontem, quando a manchete havia trazido a notícia de que um casal fora assassinado no bairro da Lagoinha, sem que nenhuma pista do criminoso tivesse sido encontrada. Parece que só o cachorro do casal presenciou o crime, dizia o jornaleiro, enquanto erguia-se para ajeitar uma revista tombada na prateleira. Mas cachorro não fala, só late, arrematava Veridiano, repondo o caso em sua devida e misteriosa estaca zero. O Cruzeiro enfrenta amanhã o Flamengo, informava o vendedor. Vai ser um jogão, suspitava Veridiano, naquela conversa descosturada que todos sabem existir entre o sapateiro e quem espera o sapato, o passageiro e o taxista, o paciente e a secretária do consultório, o biriteiro e o dono do boteco. Conversa fiada que nada acrescenta. É um jogar palavras ao vento, sem atar laços afetivos nem se intrometer na vida do outro, onde as mentiras são gentilmente aceitas, os exageros permitidos, sem que haja convite para retornar no dia seguinte ou marcar novo encontro. Enquanto ouvia o jornaleiro comentar o noticiário das primeiras páginas, Veridiano recolhia das pilhas de jornais os de sempre: Estado de Minas, Correio Braziliense, O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Antes de acomodá-los na sacola de pano, fitava detidamente as fotos de capa, comentava uma ou outra com o jornaleiro, como essa casa ficou destruída! É, retrucava o vendedor, a chuva fez muitos estragos ontem na capital paulista, e entre uma observação e outra Veridiano recolhia a sua encomenda diária, pagava e, com um até amanhã lacônico, afastava-se, tomando o rumo da praça da matriz. Havia ali, ao lado do coreto, meia dúzia de tabuleiros de damas, quadriculados em mesas fixas, em torno das quais aposentados se ocupavam para não ver o tempo passar. O grupo de Veridiano habituara-se a jogar entre onze e uma hora, enquanto se abria o apetite para o almoço que, em casa, suas mulheres preparavam. Então, trouxe os jornais, perguntavam os amigos como se dissessem a Veridiano bom-dia, seja bem-vindo. Todos aqui, bem lidos, respondia ele, enquanto distribuía às mesas os periódicos e adiantava, em breves comentários, uma ou outra notícia de destaque. Tudo que tem aí já aconteceu, brincava ele. Veridiano era tido, ali na praça, como o mais lido e bem informado da turma. Os anos passavam sem abalar a sua fama. Nenhum de seus parceiros de jogo, nem o jornaleiro, jamais desconfiou de que ele era, de fato, analfabeto. * Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto - Autobiografia Escolar" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/109627?language=es
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