Espanha no coração

23/03/2004
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De repente do riso fez-se o pranto no ardente e generoso coração do ensolarado país espanhol. De repente a rotina alegre e pacífica dos madrilenhos foi interrompida por bárbaras explosões que fizeram saltar pelos ares vidas, corpos, futuros e esperanças. De repente, não mais que de repente, o dia 11 de março de 2004 repetiu a tragédia de outro dia 11, do lado de lá do Atlântico, na derrubada da imunidade do Ocidente, em setembro de 2001. De repente o mundo inteiro sentiu que a violência do terrorismo não terminou. Sua escalada continua, as represálias somando-se aos ataques gratuitos e inesperados, a paz sempre mais esmagada e ameaçada , não encontrando ar para respirar, lugar para brotar e crescer. Ao contemplar na mídia o mar de sangue e destruição em que ficou banhada a antes alegre e insone cidade de Madrid, a poesia de Manuel Bandeira nos volta irresistivelmente à memória, como elegia para esta cidade escolhida pela roleta russa do terror para ser sua última e indefesa vítima. Espanha no coração / No coração de Neruda, / No vosso e em meu coração. É o coração do Ocidente que pulsa novamente em dolorosa diástole, ao ver as vidas ceifadas pelo terror sem rosto, que se identifica posteriormente por cartas e vestígios deixados em veículos abandonados ou por fitas de vídeo que assumem a responsabilidade dos atentados. Ao ver, logo depois, a onda imensa de solidariedade que tomou as ruas das cidades espanholas, ao ver as pessoas se acotovelando para doar sangue, para ajudar, para socorrer, para assumir como sua a tragédia que era de seu povo, embora não as tivesse atingido diretamente, outro sentimento nos habita o coração. As palavras do poeta Bandeira ecoam, mais verdadeiras do que nunca. Espanha da liberdade, / Não a Espanha da opressão.... Espanha de honra e verdade, /Não a Espanha da traição! As investigações para descobrir os autores do atentado deixaram emergir acusações que responsabilizaram os dirigentes espanhóis, às vésperas das eleições. Aznar foi interpelado diretamente pelo apoio dado a Bush para a invasão do Afeganistão e do Iraque. No entanto, o ódio e a vingança contra os senhores das grandes potências não os atingem, mas sim a crianças inocentes, mulheres e homens trabalhadores, anciãos pacíficos e jovens na plenitude da vida. Aí está talvez a face mais perversa da violência: a de recair sempre sobre inocentes e nunca sobre os culpados, a de procurar atingir os culpados através dos inocentes, a de preferir o caminho da vingança ao do diálogo, do perdão e da reconciliação. E terminar cometendo atos insanos que nada resolvem e só fazem piorar o sentimento de pânico e revolta que toma conta do mundo. Em meio à dor imensa que dilacera seu país ensangüentado, a Espanha reage com generosidade. Concede a nacionalidade espanhola aos estrangeiros mortos e a suas famílias. Financia viagens para os familiares das vítimas que estejam longe e desejem vir visitá-los. Abre suas portas para acolher os diferentes que até ontem não desfrutavam da plena cidadania em seu país. Espanha da liberdade, fiquemos atentos aos teus gestos de humanidade e positiva reação no momento em que estás mais ferida. Quem sabe não poderás nos ensinar a comportar-nos em uma época onde viver no Ocidente é uma tremenda insegurança e os decantados valores civilizatórios da cultura egoísta que construímos mostram escandalosamente suas falhas e carências, ocasionando apenas o aumento da violência que pretendemos deter com insanas represálias e demonstrações truculentas de poder? Aí serás, mais que nunca, a Espanha cantada nos versos de Bandeira: Espanha dos grandes místicos, / Dos santos poetas, de João Da Cruz, de Teresa de Ávila / E de Frei Luís de Leão! Os olhos do mundo inteiro estão voltados para a península manchada com teu sangue no último dia 11. Os olhos do mundo inteiro te olham esperançosos que continues sendo, por tua atitude solidária e generosa: Espanha da liberdade: / No vosso e em meu coração! * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga.
https://www.alainet.org/de/node/109658?language=en
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