Última ceia
08/04/2004
- Opinión
Nessa Última Ceia sentarei à mesa farta e estenderei, aos
semelhantes, travessas repletas de misericórdia. Servirei, em
abundância, o cardápio da saciedade: de entradas, hinos e flores,
para que a alegria plenifique o coração de cada comensal. Como prato
forte, efusão espiritual recheada de mistério, para que os sentidos
se calem e a razão, prostrada, reverencie a sabedoria. De sobremesa,
uma noz e, dentro dela, um labirinto e, em sua porta, um sino e, em
seu badalo, o reflexo da lua e, em seu brilho, o rosto interior de
cada convidado
O vinho terá o gosto das liturgias salmodiadas por cordas e címbalos
Todos haverão de se embriagar de Deus. Serão invadidos por tamanha
lucidez que já não poderão distinguir o dentro e o fora, o acima e o
embaixo, a esquerda e a direita. O feio se fará bonito e o que se
julga belo expressará o horror. O frio terá o calor da fervura e o
quente será gélido quanto uma montanha de neve. Estarão à mesa a
escória e o escárnio, o sorriso patético dos imbecis e o ódio
escancarado dos algozes, a fúria de vingança e a pérfida arrogância
da indiferença. Convidarei o desamor e a crueldade, o abuso e a
injúria, a insípida ilusão de quem se ama acima de todas as pessoas e
a efêmera riqueza dos que somam e mutiplicam atacados pela amnésia
que lhes furta a ventura de subtrair e dividir
Quero que todos à mesa provem o veneno da própria alma ou deixem seus
espíritos transbordarem em taças cheias de luz. Farei um brinde à
compaixão e pedirei um minuto de silêncio para que cada um se
envergonhe da existência contrária à sua essência. Haverá, então,
tanta música e dança e festança que os pares levitarão de olhos
fechados
Nessa Última Ceia molharei o pão em azeite novo e ofertarei ao
primeiro que arrancar as sandálias e, de pés nus, caminhar à beira do
tatame sem provar a vertigem do medo. Premiarei a fé, a cegueira da
mente, a noite escura que prenuncia o reverso dos versos. Entregarei,
assim, a amante ao amado, e um coro de anjos celebrará a união de
corpos transmutada em alucinação do espírito, o sexo sorvido como
ágape, o imponderável voejando em tão acelerado ritmo que já não
haverá Norte ou Sul, Leste ou Oeste, porque a Rosa dos Ventos estará
girando desvairadamente
Louvarei o discípulo amado por sua humilde fidelidade aos sonhos que
lapidam sua realidade, como quem cultiva um fruto que nasce na
direção do fundo da terra ou uma ostra indiferente ao seu futuro de
pérola. E beijarei aquele que haverá de trair-me, não porque o
decepcionei, mas por trazer ele, impregnado nas entranhas, essa
pusilanimidade que impede certas pessoas de serem fiéis a si mesmas.
Não o rejeitarei, ele não será vitíma de meu opróbrio. Deixarei que
ele trafegue dividido pela vida, ora amigo, ora inimigo, amável hoje,
detestável amanhã, até que possa juntar os cacos espalhados por seu
caminho e compor o vitral de sua dignidade resgatada
Nessa Última Ceia abençoarei o pão e o vinho, as moléculas do trigo e
da uva, e os átomos e os neutrinos e todas as partículas elementares,
e os quarks invisíveis e indivizíveis. E na composição do Universo,
detalhe por detalhe, será elevada ao mais alto dos céus a hóstia
cósmica de meu corpo embebido no sangue que imprime vida a todas as
galáxias. Então, todos os olhos verão que sou tudo em todos, uno e
trino, pessoa e substância, identidade e mistério
Sou o que se é, o limite intransponível da negação
Quando a noite cair e do cordeiro não restar senão os ossos,
ofertarei como alimento Deus transubstanciado em corpo e sangue, pão
e vinho. Terei ressuscitado antes de morrer e farei da vida a mais
preciosa dádiva da Criação. Alimentados por mim, todos saberão que a
Última Ceia é sempre a próxima, pródiga comemoração do amor, singelo
gesto, aqui e agora, que acontece e, assim tece os fios que enlaçam,
envolvem e fundem tudo e todos, amorosamente
Ou inexiste e, portanto, padece
Para quem guarda o apetite por aquilo que transcende o paladar e
cultiva a gula por luminescências, todas as ceias serão primeiras, e
sairão delas ainda mais famintos, porém saciados de felicidade.
* Frei Betto é escritor, autor de "Entre todos os homens" (Ática),
entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/109734?language=es
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