Descontextualização
13/05/2004
- Opinión
Na cabeceira da cama de hotel em qualquer metrópole ocidental,
as indicações do que pode interessar ao hóspede: cinemas,
teatros, night-clubs, museus... e horários de missas e de cultos
nas principais igrejas. Como no jogo dos coelhos rodeados de
casinhas, propõe-se que cada um se meta num buraco. Fissurados
pela especialização, o advogado não sabe como cuidar da própria
gripe e o médico ignora como regular o motor de seu carro.
Suprimidas as aulas de religião, na nova geração há quem pense
que Davi foi um lutador de box que derrotou o gigante Golias num
ringue de Manhattan e que Gênesis não passa de um espetáculo de
metaleiros britânicos.
Imbecilizados pela viseira da descontextualização - sem
critérios que permitam estabelecer a relação entre o sorriso do
Presidente dos Estados Unidos e o choro faminto de uma criança
no Brasil, na India ou no Zaire - ficamos como o garoto que olha
perplexo para as peças do quebra-cabeças amontoadas na caixa.
Aprendemos nos livros e nas aulas que somos um nó de relações
sociais ou, como dizia Ortega y Gasset, "eu sou eu e minhas
circunstâncias", mas o sistema insiste em nos transformar em
amebas sem circunstâncias, sem relações e sem história.
Se não nos podem arrancar fisicamente do contexto, já que somos
da espécie dos animais dependentes, ao menos se esforçam por nos
isolar psíquica e politicamente. Quanto mais ignorarmos o
contexto no qual estamos inseridos, tanto melhor para aqueles
que detém o poder sobre o status quo. Como são inteligentes,
jamais dirão as coisas dessa maneira. Dirão que nos querem ver
felizes. E que a preocupação com a realidade circundante só traz
infelicidade: catástrofes, fracassos, violências, corrupções.
Meta-se em seu casulo e espere resignadamente o momento de se
transformar em borboleta. Quem aceita, usufrui da felicidade da
lagarta, na rastejante alegria de sonhar com seu borboletante
futuro.
Em socorro daqueles que insistem em permanecer com os olhos
abertos, mas com preguiça de pensar, vem o oráculo sagrado da TV
e, a seu modo, faz as conexões, induzindo-os a crer que fora do
livre mercado - onde o homem se afirma como o lobo do homem -
não há salvação. E quem nem sequer possui a liberdade de
participar do mercado, que se meta na economia informal, assuma
a contravenção ou faça de seu sofrimento neste mundo um
meritório recurso de conquista da salvação eterna. Um pouco de
ópio talvez nos convença de que Deus quer nos salvar deste
mundo, induzindo-nos a ignorar que Ele veio nos libertar neste
mundo, resgatar o próprio mundo e integrar toda a Criação na
gloriosa ressurreição do Filho do Homem.
Alguns têm a sorte de encontrar um fio de Ariadne. Os cristãos
buscam na Bíblia o espelho que lhes permite decifrar os enigmas
da história. Encontram em Jesus de Nazaré o sentido mais radical
e profundo de suas existências. Os marxistas, ainda que abalados
pelo "terremoto" do Leste europeu, apegam-se às suas análises de
classes e descobrem que ser revolucionário é bem mais difícil
que do professar a teoria da revolução. Outros, menos universais
e pouco preocupados com os destinos da humanidade, ingressam na
primeira seita ou grupo que lhes alivie o coração e assegure a
salvação. Ou entram para uma equipe de xadrez, uma ginástica
aeróbica ou um vídeoclube, reduzindo o mundo às paredes que o
cercam e às veleidades individuais. Se há favelas e conflitos
raciais, que cuidem os políticos. Ou, quem sabe, tais fenômenos
não fazem parte da paisagem humana, como a seca do Nordeste ou
as enchentes em épocas de chuva, com os quais devemos nos
acostumar!...
A razão cínica cumplicia a omissão, como se o acaso fizesse
parte inelutável da dinâmica da vida.
* Frei Betto é escritor, autor de Típicos Tipos - Coletânea de
Perfis Literários (A Girafa), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/109929?language=es
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