Diamond is forever, os cintas-largas também

23/05/2004
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
17, Charterhouse Street, Londres. Todas as segundas-feiras, de cinco em cinco semanas, uma dúzia de homens ingressa no luxuoso edifício e um deles enfia um cartão magnético na fina garganta de uma porta eletrônica. O cartão aciona o sistema de som que solicita: ‹ Senha, por favor. ‹ Kimberley, number 666-4. A porta se abre, recolhendo seus grossos dentes blindados. Os homens passam, ignorando o circuito fechado de TV que os controla e os espelhos magnéticos que conseguem captar o que trazem em suas pastas e nos bolsos. Ali funciona o escritório inglês da maior empresa de comercialização de diamantes do mundo: a De Beers Consolidated Mines Ltd., com sede na África do Sul. Porém, suas atividades, que não brilham tanto quanto seu produto, estendem-se por toda parte onde há diamantes: Botswana, Zaire ou Austrália. E seus escritórios de representação são encontrados na Suíça, em Lichtenstein, em Luxemburgo ou nas Bermudas. A De Beers existe há mais de um século. Fundada pelo colonizador inglês Cecil Rhodes, permanece em mãos da família sul-africana Oppenheimer. O nome da empresa é uma homenagem a Nicolas De Beer, dono da fazenda na qual, em 1871, se descobriu uma fantástica jazida de diamantes. Em fins do século XX, cerca de 40% dos diamantes brutos extraídos no mundo ficavam em mãos da De Beers. E mais de 80% dos diamantes vendidos eram fornecidos pelo setor sul-africano da empresa. A De Beers controla, soberana e impune, todo o comércio internacional de diamantes. Todos os que se dedicam a qualquer tipo de atividade que envolva essa preciosa pedrinha que, lapidada e polida, brilha em anéis, brincos, pulseiras, diademas, broches e coroas, estão sujeitos às determinações da empresa. Cada preço é decidido por ela. A cada segunda-feira celebra-se mais um sight: a cerimônia promovida pela Central Selling Organization - conhecida por CSO - controlada pelo coração da De Beers, a Diamond Trading Company. Na confortável sala de sofás recobertos por pele de antílopes, afundam-se negociantes vindos de Bombaim, Nova York, Tel Aviv e Antuérpia, os mais importantes centros de revenda e lapidação do mundo. Os sightholders, como são conhecidos os raros membros dessa estranha família, decidem se repassam ou não sua mercadoria mais preciosa. Acompanhado por um broker - nome dado aos cinco corretores da De Beers ­ o texano Fred Brady entrou, numa dessas segundas-feiras, naquele misterioso templo, disfarçado em diamantaire. Deu o seu nome e foi levado a uma das quarenta salas da CSO, onde sentou- se de frente para uma pequena mesa, levemente inclinada em direção aos seus joelhos e sobre a qual havia uma delicada saliência. O broker calçou ali uma caixa de papelão castanho, do tamanho de uma caixa de sapatos, e destampou-a. Dentro de saquinhos de pano e de envelopes de papel branco, que ele abriu como um cirurgião manipula os órgãos de um paciente, estava o lote de diamantes brutos. A qualidade variava. O broker advertiu-o: ‹ O senhor pode examiná-las e testá-las, mas não há como escolhê-las. Deve aceitar a caixa como está. Ou desistir da transação. Brady experimentou um sentimento de quem escolhe uma morada no céu, sabendo que a compra assegura a salvação e, ao mesmo tempo, aproxima-o do espectro da morte. ‹ Qual o valor da caixa? ­ indagou com o sotaque carregado. ‹ Esta é barata, cem mil dólares. A mais cara custa vinte e cinco milhões de dólares. O interessado teve vontade de rir, mas conteve-se. ‹ Bem ­ disse ao despedir-se ­ hoje só vim conhecer a mercadoria. Não trouxe dinheiro nem cheque. Volto outro dia. Obrigado pela atenção. Numa segunda-feira como aquela, a CSO chega a obter cerca de US$ 450 milhões. Cada caixa é vendida à vista e paga cash. O segredo da De Beers está no controle absoluto da oferta e da procura de diamantes. Se uma determinada qualidade torna-se muito procurada, a empresa reduz sua circulação, deixando-a "congelada" em seus cofres. Assim, impede a queda dos preços. Se houvesse livre concorrência, possivelmente os diamantes custariam a metade do preço. A empresa chega inclusive a recomprar pedras para retirá-las do mercado, assegurando assim o seu valor. O importante é garantir que, em todo o mundo, a comercialização de diamantes tenha um único canal: a De Beers. Não há um único diamante lapidado no planeta que a empresa não saiba exatamente quando foi vendido, por quem, a quem e por quanto. E controla todos os lapidadores com pretensão de formar estoques próprios. Só em publicidade investe, por ano, em todo o mundo, US$ 150 milhões. Desde 1938 mantém o slogan publicitário criado pela agência Ayer Inc., de Nova York: "A Diamond is forever" - "Um diamante é para sempre." Talvez as únicas concorrências publicitárias tenham sido a canção interpretada por Marilyn Monroe, em 1953, no filme Os Homens Preferem as Loiras ­ "Diamonds are a girl's best friend" (Os diamantes são o melhor amigo de uma garota) e a canção "Diamonds are forever", interpretada por Shirley Bassey no filme do mesmo nome, da série 007. Meses depois, Brady retornou à Charterhouse Street. Desta vez, com dinheiro no bolso. Havia obtido importantes patrocínios. Explicou muito bem a mercadoria que lhe interessava: ‹ Quero uma pedra sem nenhuma inclusão visível de carbono, para não causar a menor obstrução ao percurso da luz. O branco deve ser extremamente puro. O corte, de proporções ideais, de modo a refletir o máximo de luz recebida. ‹ Pelo que ouço, o senhor quer, nada mais, nada menos, do que o Estrela do Sul ? ­ reagiu o broker. ‹ Exatamente. ‹ Sabe quanto custa? ‹ Quanto? ‹ Oitenta milhões de dólares. Trata-se de uma pedra em forma de coração, encontrada na Índia no século XVII, e lapidada pelo mesmo artista que edificou o Taj Mahal. ‹ Não tenho toda esta fortuna ­ confessou Brady ­, nem que vendesse todas as minhas propriedades e obras de arte. Mas posso pagar por outro que custe a metade. Desde que aceitem uma parcela em dinheiro e, a outra, na forma de um documento raro. ‹ Posso ver o documento? Brady abriu a pasta e puxou um cartucho. Destampou-o, retirou dois canudos de papel, desenrolou-os e exibiu-os ao broker. O vendedor fez uma expressão de espanto, levantou-se, pediu que o cliente aguardasse um momento e retornou, pouco depois, em companhia do diretor-geral da De Beers. Este tomou os papéis em mãos e examinou-os como se decifrasse os hieroglifos de um pergaminho. ‹ É o mapa e a escritura da Reserva Roosevelt, em Rondônia, no Brasil. Sou o proprietário e tenho todos os contatos necessários ­ disse. ‹ Isso vale alguns milhões de dólares. A reserva indígena fora visitada, em 1913, por Theodore Roosevelt, ex-presidente do EUA, cuja gestão se caracterizou por uma ofensiva imperialista. O coronel Rondon serviu-lhe de cicerone e homenageou-o batizando, com o nome dele, o rio formado pelas águas do Castanha e do Aripuanã. De volta aos EUA, Roosevelt narrou a saga em seu livro "Through the Brazilian Wilderness" (1914). ‹ Se me permite a curiosidade ­ disse o diretor ­ posso saber como obteve a propriedade? Pelo que estamos informados, a área está dentro de uma reserva indígena. ‹ Isso é uma longa história ­ esquivou-se Brady ­ e tenho pressa. Mas meus advogados lhe darão os documentos que comprovam que sou o legítimo dono. O negócio foi fechado. Brady saiu da De Beers com uma pedra no valor de US$ 15 milhões. Ao deixar o local, refugiou-se num pub de Convent Garden, onde comemorou a transação em companhia de amigos. Em menos de uma hora esvaziou, sozinho, uma garrafa de gim. Não demoraria muito para a De Beers descobrir que, pela primeira vez, fora vítima de um falsário, que desapareceu como se tivesse evaporado. Porém o sinal estava dado. Como formigas atraídas por mel, aos poucos os garimpeiros - pobres homens recrutados no interior de Rondônia - começaram a invadir as terras dos cintas- largas. Os índios reagiram. Em 1963, uma companhia mineradora optou pela solução final, convencida de que só teria acesso aos diamantes se eliminasse todos os cintas-largas. Do alto de um aeroplano, a mineradora lançou dinamites sobre a aldeia. O genocídio custou a vida de centenas de índios. Ficou conhecido como o Massacre do Paralelo 11. E nunca mais saiu da memória dos sobreviventes. Quarenta e um anos depois, os cintas-largas se consideraram em número suficiente para, de novo, expulsar os invasores de suas terras. Em abril de 2004, atacaram os garimpeiros, desta vez com bordunas, flechas e o que tomaram de suas vítimas: machados e armas de fogo. Cerca de 30 garimpeiros foram massacrados. Mas o brilho do sangue derramado não se refletiu nas salas de Charterhouse Street, nem causaram obstrução ao percurso da luz. * Frei Betto é escritor, autor de "Típicos Tipos - coletânea de perfis literários" (A Girafa), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/109969?language=es
America Latina en Movimiento - RSS abonnieren