Crises de identidade

08/07/2004
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Em comum os EUA e o Iraque tem, pelo menos, crises de identidade. Quando Sadam Husseim, levado ao tribunal de um governo tutelado por tropas de ocupação, ao identificar-se como "presidente do Iraque", diante de um juiz atônito, gerou uma crise na cabeça dos iraquianos, que vivem entre dois regimes de terror, que não puderam escolher livremente, disputando entre si uma legitimidade que não podem ter. O governo Bush deve ter se arrependido de não ter dado a Sadam o mesmo destino reservado para seus filhos. Foram vítimas das suas próprias ilusões de que seriam recebidos como libertadores do povo iraquiano e que este faria do julgamento de Sadam uma festa de coroação de um regime tutelado, mas assumido pelo povo como seu. Hoje, se houver testemunhas públicas, várias delas poderão falar do que sofreram no regime de Sadam, ao lado do que sofrem desde que as tropas anglo-saxãs ocuparam o país e, nesse caso, transformarão o processo em um espaço de denuncia contra os dois regimes. Não ficará claro quem julga e quem está sendo julgado. Do outro lado do mundo, os EUA não vivem uma crise de identidade menor. Desde os atentados de setembro de 2001 que os norte-americanos se perguntam "por que nos odeiam tanto?" Não faltaram respostas do tipo "porque nos invejam". É o tom, entre outros, do conservador Dinesh D'Souza, em seu livro "O que há de tão bom na América", onde um dos capítulos se chama exatamente "Por que nos odeiam" e sua resposta é a mencionada. Fareed Zakaria, editor de política da Newsweek, Michael Walzer, professor de ciência política de Princeton, Robert Kagan, ensaísta do Pentágono – tentam responder, entre tantos outros, à inquietação de um país que considera encarnar o bem no mundo, com a responsabilidade de zelar pelos valores da liberdade e se sente rejeitado e incompreendido. A versão mais recente vem de Samuel Huntington, uma aplicação do seus "conflitos de civilização", agora adaptado a um vizinho próximo – os mexicanos. Huntington tinha se notabilizado, em vários momentos, por teses as mais variadas, conforme soprava o vento nos EUA. Terminada a "guerra fria", quando a elite norte-americana buscava o "novo inimigo" – inicialmente reciclado para o "narcrotráfico"-, Huntington propôs outras "civilizações" – nas antípodas da sua, branca, anglo-saxã, protestante – como os inimigos que o império buscava. No seu recém publicado "Quem somos nós – Os desafios para a identidade nacional americana"- Huntington localiza nos mexicanos o principal desafio. Situiados na imensa fronteira sul dos EUA – a única fronteira entre o primeiro e o terceiro mundo -, os mexicanos romperiam com os cânones tradicionais dos imigrantes – de que os EUA sempre se orgulharam, dentro do "cadinho de raças" que propagam. Mas neste caso, se romperia não apenas com o protestantismo original, mas também com a língua e com o "espírito empreendedor" que atribui aos norte-americanos. (Ele trata de não mencionar a questão da raça, mas não consegue esconder seu preconceito.) Os mexicanos, ao contrário dos exilados cubanos, gostam do seu país, não se mostrariam dispostos a renunciar à sua identidade original, retornam constantemente a seu país, vivem agrupados, constituindo maioria em numerosas regiões dos EUA. Atentariam contra dois bastiões fundamentais da identidade norte-americana, segundo Huntington: o idioma e a religião. Além disso, não obedeceriam ao trajeto tradicional dos imigrantes, que entravam por Nova York, sendo recebidos pela Estátua da Liberdade, como uma cerimônia de identificação, ao ser abraçados pelos valores do novo mundo. Enquanto que os mexicanos chegam sorrateiramente, pela fronteira sul, na maioria como clandestinos, vão e vem, sem respeitar fronteiras, tramites migratórios e a simbologia de quem chega à maior potência do mundo, que os deseja cooptar. Tanto iraquianos, quanto norte-americanos, não sabem muito bem quem são. Estão nas antípodas do mundo – uns pertencem à maior potencia imperial, ocupante do país dos segundos -, mas nem eles conseguem encontrar sua identidade. Revelam como nem verdugos, nem vítimas, nem ocupantes, nem ocupados, nem "libertadores", nem "libertados" podem se emancipar e encontrar suas identidades em um mundo marcado fundado no poder da força e da violência, em que ninguém consegue responder ao "quem somos nós", sem que todos possam se emancipar - solidários e iguais.
https://www.alainet.org/de/node/110226?language=es
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