Movimento social e poder estatal: relações perigosas
17/08/2004
- Opinión
O debate instalado pelo neozapatismo sobre o poder estatal corre
o risco de ficar no terreno abstrato dos debates ideológicos
caso não esteja vinculado com as experiências concretas dos
movimentos anti-sistêmicos. A história recente da América
Latina permite avançar sobre os resultados da aposta estatal,
sobretudo, em países onde os movimentos sociais participam em
diversos espaços estatais. Avaliar como influiu em sua
fortaleza, capacidade de mobilização, unidade interna e
credibilidade, diante de suas bases, parece uma fonte de
aprendizagem para o conjunto dos movimentos.
A participação do movimento social equatoriano no governo de
Lucio Gutiérrez, pese o escasso tempo que alguns de seus
dirigentes permaneceram em cargos governamentais, pode ser uma
boa ocasião para baixar à terra o debate proposto pelos
zapatistas. O movimento equatoriano era talvez o mais potente
do continente até começos do século: desde 1990, o movimento
indígena aglutinado na CONAIE foi capaz de promover e organizar
vários levantes nacionais, tecer alianças com amplos setores
populares, derrubar dois presidentes, frear a aplicação de
medidas neoliberais e criar uma densa rede de contrapoderes, em
escala local, regional e até nacional, estando à frente das
principais mobilizações sociais. Depois de uma década de
intensa atividade, o Estado entrou em crise desde janeiro de
2000, momento chave para compreender a virada política que
resultou no triunfo de Gutiérrez e a participação do movimento
indígena - a principal força organizada do país - no novo
governo.
Essa notável capacidade contrasta vivamente com a situação
posterior à retirada do Movimento Pachakutik - braço político-
eleitoral da CONAIE - do governo Gutiérrez, cujo apoio foi
decisivo para o coronel chegar ao poder. A situação atual está
pautada pela divisão e a escassa capacidade de mobilização, o
desgaste e a debilidade. Não só surgiram rompimentos entre
dirigentes - alguns dos quais seguem apoiando ao governo
neoliberal - mas também entre organizações da serra e da
amazônia, e entre os dirigentes e as bases, logo da participação
de vários líderes históricos no governo. Ainda que estas
divisões não sejam novas, se registram em um contexto de
renovada capacidade do aparato estatal para neutralizar e
cooptar, toda vez que conta com o apoio de destacados dirigentes
e até de setores inteiros do movimento. O panorama se mostrou
realmente difícil e não são poucas as vozes que falam de um
"ponto de inflexão" (revista Tintají No. 47) e até de um
retrocesso "de uma década" , do principal movimento equatoriano.
A situação oposta é a que atravessa o Movimento Sem Terra, do
Brasil. Desde sempre manteve relações estreitas com o Partido
dos Trabalhadores (PT) e apoiou a candidatura de Lula, mas soube
manter distâncias com o governo e aprofundar sua autonomia. Os
sem terra - diferente dos equatorianos - não participam com
quadros nem dirigentes no governo petista. Em uma recente
entrevista publicada pela revista OSAL, João Pedro Stedile,
principal dirigente do movimento, sustenta a tese de que com o
governo de Lula é possível avançar a reforma agrária, já que há
uma mudança na correlação de forças do país, mas, em poucos
meses, o MST organizou centenas de acampamentos e já existem 200
mil famílias, um milhão de pessoas, acampadas nas beira das
fazendas, pressionando sobre a terra. É a maior quantidade de
acampados na história do movimento. A recente campanha "abril
vermelho" foi uma importante mobilização nacional que incluiu
140 ocupações de terras, que fortaleceu a autonomia do MST e
cortou qualquer pretensão de cooptação ou subordinação ao
governo de Lula.
Agora o MST está empenhado em promover "um processo de lutas
sociais e de mobilização que provoque um reacenso do movimento
de massas", para dobrar a política neoliberal do governo. Para
ele, a Coordenação de Movimentos Sociais, que já está situada,
convocará uma jornada nacional de mobilizações centrada no
desemprego, para o próximo 7 de setembro, dia dos excluídos.
Ainda que não se mencione de forma explícita, o MST parece
avaliar que a chegada ao poder do PT representa uma derrota
histórica para a esquerda, pois Stedile sustenta que "no Brasil
teremos que reconstruir uma prática de esquerda", porque " nos
últimos vinte anos ficamos somente acumulando forças no terreno
eleitoral e institucional".
Ambas experiências podem servir como espelho para o conjunto dos
movimentos do continente. Mas são, por sua vez, uma boa ocasião
para enriquecer o debate sobre tomar ou não o poder, sobre as
relações que devem manter os movimentos com os estados e,
particularmente, sobre a participação em instâncias e espaços
estatais. Colocam em branco e preto, a importância da
construção da autonomia como uma prática permanente; e de
encontrar os espaços físicos, territoriais, e o que exercê-lo.
O futuro dos movimentos e a possibilidade de reverter a crítica
situação que atravessam os equatorianos, fixa-se na obstinada
autonomia que mantém os espaços comunitários de base. (tradução
Daniela Stefano)
https://www.alainet.org/de/node/110383
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