Ministério do Desenvolvimento Agrário denuncia: proposta do Mercosul prejudica milhões de pequenos agricultores

Acordo com europeus fere soberania

03/10/2004
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Resumo: "O Mercosul está cedendo em setores estratégicos para o nosso desenvolvimento. Esse acordo está muito desequilibrado, principalmente em agricultura". A avaliação é de Laudemir Müller, chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Desenvolvimento Agrário, que participa das negociações do tratado de livre comércio do bloco sul-americano com a União Européia. Entre as concessões, o governo brasileiro aceita zerar a tarifa de importação do leite europeu, sendo que os produtores da UE recebem subsídios de 1,7 bilhão de euros. A oferta prejudica mais de 1,8 milhão de produtores brasileiros. Parlamentares, a CUT e a Via Campesina criticaram o governo brasileiro por não discutir com a sociedade os impactos desse tratado. "Se esse acordo vier para o Congresso, eu vou trabalhar contra a sua assinatura", promete o deputado federal dr. Rosinha. Mercosul cede aos europeus o que não negocia na Alca e na OMC O Mercosul está colocando em xeque a segurança alimentar e o desenvolvimento do Brasil na negociação de um tratado de livre comércio com a União Européia (UE). E, desta vez, os movimentos sociais e as Organizações Não-Governamentais (ONGs) não estão sozinhos na denúncia desse acordo. Agora, o próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) alerta para os riscos da oferta entregue aos europeus, dia 24 de setembro. A posição do MDA de criticar abertamente a proposta do Mercosul reflete o clima de divergências dentro do governo sobre o conteúdo do acordo. Antes de o bloco sul-americano fechar sua proposta, em uma reunião com técnicos de vários ministérios, o representante do MDA abandonou as negociações depois de ouvir do Itamaraty que o Brasil aceitaria reduzir para zero a tarifa de importação para o leite europeu, em dez anos. Hoje, o imposto é de 27%. Ameaça Para o Ministério, a medida ameaça a produção alimentar no Brasil. "O Mercosul está cedendo em setores estratégicos para o nosso desenvolvimento. Esse acordo está muito desequilibrado, principalmente em agricultura", critica Laudemir Müller, chefe da Assessoria Internacional do MDA. Hoje, existem 1,8 milhão de produtores de leite no país, dos quais 80% de porte familiar. São trabalhadores rurais como o gaúcho Leandro Noronha que, com a produção de oito vacas consegue, com sorte, renda mensal líquida de R$ 200 para sustentar a família, em Encruzilhada do Sul. Se o acordo com os europeus for assinado, a família de Noronha corre o risco de ficar sem esse rendimento, que hoje está abaixo do salário mínimo. "A eliminação das tarifas forçará o preço pago aos produtores para baixo. Os pequenos e médios perderiam demais e não teriam como competir com o leite produzido na União Européia, altamente subsidiado", explica Altacir Bunde, da direção nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Os europeus reservaram, neste ano, 1,7 bilhão de euros para subsidiar a exportação do produto. Concessões O caso do leite é apenas um exemplo do impacto das concessões que os governos da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai estão fazendo. O Itamaraty aceita, ainda, acordos em áreas tidas anteriormente como inegociáveis, como investimentos, compras governamentais, serviços e propriedade intelectual. "As condições desse acordo são piores que as da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e da Organização Mundial do Comércio (OMC). O Mercosul está muito mais generoso e entrega áreas estratégicas sem ganhar nada", acusa Fátima Mello, da secretaria da Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip), articulação política de ONGs e movimentos sociais. "Os europeus querem ampliar mercados para produtos de alto valor agregado, enquanto nossa pauta primária-exportadora consolida uma situação já vivida em vários momentos da história brasileira", avalia Laudemir Müller, do MDA. Perdas Sem mesmo conhecer a oferta dos europeus, o Mercosul enviou com antecedência de dias suas concessões — abrindo mão de uma regra previamente combinada, a troca simultânea de ofertas. Quando as receberam, os europeus se disseram insatisfeitos. Nem fizeram uma oferta oficial, mas já pediram que o Mercosul amplie suas concessões. "Em troca disso, o Mercosul está conseguindo algumas cotas em produtos que já exportamos. Nosso ganho, em carne bovina, por exemplo, não daria um navio de carne por ano", relata Müller. A União Européia só aceita reduzir tarifas para apenas uma cota do volume das atuais exportações do Mercosul. No caso da carne, os europeus propõem diminuir — em dez anos — os impostos de 160 mil das 275 mil toneladas exportadas. Isso com a ressalva de que, no primeiro ano do acordo, a redução seria de 10% da cota, dividida pelos quatro países. Assim, o Brasil teria desconto em apenas 4 mil toneladas de carne vendidas. Pior para pequenos "A posição do governo é tomada de acordo com as políticas propostas pelo agronegócio. Corremos o risco de inviabilizar a produção de milhares de pequenos produtores em troca de vender alguns produtos para o mercado europeu", acusa Altacir Bunde, do MPA. Atualmente, Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura e empresário do agronegócio, e Luiz Fernando Furlan, ministro do Desenvolvimento e ex-presidente da Sadia, são os que definem, ao lado do Itamaraty, a posição brasileira na negociação com os europeus. As propostas não são discutidas com a sociedade brasileira e até mesmo o Congresso Nacional desconhece o que está sendo acordado. "Esses dois ministros são os grandes responsáveis pelo tratado com os europeus. Eles representam uma elite, com seus oligopólios, e não se importam que os pequenos quebrem. É a velha visão da política. O governo é Lula, mas infelizmente, isso permanece", lamenta o deputado federal Dr. Rosinha (PT-PR), presidente da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul. O Ministério das Relações Exteriores foi procurado por diversas ocasiões pela reportagem do Brasil de Fato, mas não quis se pronunciar. Trabalhadores e agricultores denunciam "entreguismo" Se depender da disposição do governo brasileiro, os movimentos sociais terão um prazo curto para barrar o tratado de livre comércio do Mercosul com a União Européia. Diplomatas dos dois blocos comerciais querem concluir as negociações até 31 de outubro. No final do mês, uma reunião ministerial no Brasil ratificaria o tratado. O prazo foi estipulado porque, em outubro, vence o mandato dos negociadores europeus, que serão substituídos. Se não houver acerto até essa data, será necessário reiniciar toda a negociação. Poucos dias após a entrega da proposta do Mercosul, os movimentos sociais demostraram agilidade para manifestar repúdio ao fechamento do acordo. Em declaração oficial, a Vía Campesina classificou de "traidores", "mercadores de segunda categoria" e "vende pátria" os diplomatas brasileiros. O texto é assinado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento das Mulheres Camponesas e Comissão Pastoral da Terra (CPT). Já a Central Única dos Trabalhadores (CUT) enviou uma carta aos ministros Celso Amorim (Relações Exteriores), Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento) e Roberto Rodrigues (Agricultura) exigindo que nenhum acordo seja assinado sem que a sociedade participe das discussões sobre os impactos dessa negociação. Conseqüências Na carta enviada aos ministérios, a CUT avalia que o acordo com os europeus poderá desestruturar cadeias produtivas, como a do setor automobilístico, com empresas de autopeças indo à falência. "Como podemos, produtores, trabalhadores e consumidores avaliar os impactos de uma proposta que não conhecemos em sua extensão?", pergunta a direção nacional da Central. Já a Via Campesina denuncia que o acordo forçaria milhões de agricultores a engrossar as "fileiras do êxodo rural". Se o acordo for assinado, os produtores de leite, vinho, cebola, alho e pêssego serão prejudicados, afirmam as organizações. Os camponeses criticam também as concessões feitas nas áreas de compras governamentais, investimentos, bens industriais e serviços (leia a íntegra na página www.jubileubrasil.org.br). Subordinação "Não podemos nos calar diante dessa vergonhosa submissão dos interesses do povo brasileiro ao capital europeu, levada adiante por negociadores, que deveriam se chamar de 'entregadores', que não têm qualquer legitimidade para nos representar. Esperamos que o governo brasileiro, honre seus compromissos de campanha com o povo brasileiro e defenda pelo menos nosso trabalho. O que está em jogo são a nossa soberania e o nosso futuro como país. Esta em jogo um projeto de desenvolvimento nacional", conclui a Via Campesina. (JPF) Parlamentares criticam falta de transparência "É um processo de negociação sem transparência, sem democracia. Se esse acordo vier para o Congresso, eu vou trabalhar contra a sua assinatura", promete o deputado federal dr. Rosinha (PT-PR), presidente da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul. A ameaça reflete o clima entre os parlamentares em relação à negociação do acordo de livre comércio do bloco sul americano com a União Européia (UE). Sem acesso a quaisquer das propostas, os deputados e senadores se limitam a acompanhar pelos jornais o que o Ministério de Relações Exteriores está oferecendo aos europeus. "Essa situação é insustentável. O Parlamento não pode ficar restrito a referendar um acordo sem acompanhar o processo negociador", critica a deputada federal Maria José Maninha (PT-DF), vice- presidente da Comissão de Relações Exteriores e presidente da Comissão Parlamentar das Américas (Copa). Por duas vezes, os deputados já solicitaram, oficialmente, explicações ao Itamaraty, mas não foram atendidos. "O processo está sendo diferente do que ocorre nas negociações da Área de livre Comércio das Américas (Alca), quando os negociadores informavam o que estava em negociação", diz a deputada. Para Dr. Rosinha, o acordo com a União Européia abre um precedente perigoso. "É um erro estratégico no enfrentamento da Alca e da OMC. Depois disso, o governo não encontrará mais razão para se opor a essas negociações", conclui o parlamentar. Anatomia de um acordo desigual Interesses em jogo O Mercosul oferece aberturas em vários setores sócioeconômicos, aceitando temas que não negocia na Área de Livre Mercado das Américas (Alca). Na negociação, o bloco sul-americano se limita a buscar aumento de exportações agrícolas. A União Européia (UE) quer o mesmo o que os Estados Unidos desejam com a Alca. Os europeus anseiam garantir mercados para suas transnacionais e impor alterações jurídicas e institucionais nos outros países para privilegiar o capital europeu. Algumas propostas em jogo Agricultura Mercosul propõe a eliminação das tarifas de importação do leite europeu em um prazo de dez anos. Atualmente, a tarifa está em 27%. Exige uma proposta européia que possibilite ganhos imediatos com a exportação agrícola; UE oferta reduzir impostos de parte da exportação do Mercosul. Exemplo: cortar impostos de 160 mil das 275 mil toneladas de carne bovina vendidas para o Velho Mundo. Conseqüências: Os ganhadores dessa negociação seriam, apenas, os atuais agroexportadores, já que aumentariam seus lucros, pagando menos impostos, sem que os países do Mercosul ampliassem suas exportações. Perdem os pequenos produtores, que terão de concorrer com o leite europeu subsidiado e todos que defendem um país com soberania alimentar. Acesso a mercados (bens industriais) UE propõe abaixar as tarifas para quase 100% que compra, hoje, dos países sul-americanos. Hoje, a taxa média está em 4%; Mercosul oferta redução ou eliminação de impostos de 90% dos produtos importados da Europa. Hoje, a taxa média está em 12%; Conseqüências: O Mercosul vai abrir mais seu mercado, reduzindo suas tarifas de 12% para zero, enquanto os europeus abaixariam de 4% para zero. Além disso, boa parte do que o Brasil já exporta aos europeus não é tarifado por ser um bem primário. Como nossa indústria é inferior tecnologicamente, a conseqüência será menos fábricas, menos empregos, menores salários, maior desemprego. Ganham as empresas exportadoras da Europa. Perdem os trabalhadores e os defensores de um projeto de desenvolvimento nacional. Compras governamentais — Mercosul abre as compras do governo federal para a concorrência de empresas européias; — União Européia pressiona para que suas empresas possam participar de concorrências nos estados e municípios Conseqüências: O acordo pode comprometer um instrumento de políticas públicas poderoso, o poder de fogo das compras governamentais. Um governo pode estimular, por exemplo, a produção dos pequenos agricultores brasileiros comprando deles alimentos para o Fome Zero. Perde quem defende o fortalecimento do papel do Estado em reduzir desigualdades sociais. Ganham as transnacionais européias. Propriedade Intelectual União Européia quer obter aquilo que não conseguiu na Organização Mundial do Comércio (OMC), um acordo de denominação geográfica. Exige que vinhos, queijos, presuntos (como parmesão, mortadela ou gorgonzola) sejam exclusivamente europeus; Mercosul aceita negociar o tema e diz que concessões dependem da oferta dos europeus sobre exportações; Conseqüências: Se assinado, um pequeno produtor brasileiro seria proibido de vender queijo tipo "parmesão" ou a simples mortadela, pois seriam patentes européias. Investimentos União Européia quer garantias jurídicas e institucionais para investidores europeus; Mercosul aceita negociar o tema, mas tenta preservar algumas áreas, como impor restrições à compra de terra por europeus; Conseqüências: Maior dependência brasileira pelo capital europeu, aumentando nossa dependência externa. * Jorge Pereira Filho, Brasil de Fato.
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