Amar o inimigo
06/10/2004
- Opinión
Com certeza o mais desafiante mandamento de Jesus é amar o
inimigo (Mateus 5, 44). Gustavo Gutiérrez, pai da Teologia da
Libertação, costuma dizer que, para ser bom cristão, é preciso
ter ao menos um inimigo, sem o que não se pode cumprir o
preceito de Jesus... Muitos se perguntam como é possível ter
amor a uma pessoa que me tem ódio ou me provoca sentimentos
irados? Talvez a resposta esteja neste gesto de grandeza humana
que relato abaixo.
Todos se recordam do alcance mundial das temporadas em que
trechos de óperas e clássicos do canto lírico reuniam três das
melhores vozes do mundo: os tenores Luciano Pavarotti, da
Itália, e os espanhóis Plácido Domingo e José Carreras.
De repente, o trio se calou. E isso aconteceu muito antes de
Pavarotti decidir se aposentar. O que teria ocorrido?
Domingo é madrileno, Carreras, catalão, e quem conhece a Espanha
sabe da rivalidade que existe entre os habitantes das regiões de
Madri e Barcelona. Mas não foi isso que afastou os dois tenores.
Em 1984, eles tiveram uma forte desavença política. Não mais se
falaram. E seus respectivos contratos passaram a exigir a
ausência do desafeto nas apresentações públicas.
Em 1987, Carreras constatou que sofria de leucemia. Na Espanha,
surgem cerca de 4.000 novos casos da doença por ano. O tenor
submeteu-se ao transplante de medula óssea, a transfusões de
sangue e a freqüentes viagens aos EUA, para tratamento. Sem
poder cantar e cumprir os contratos, viu a sua fortuna consumida
pelos cuidados de saúde.
Quase sem recursos, Carreras soube que havia em Madri uma
instituição destinada à recuperação de pessoas com leucemia, a
Fundação Hermosa. Entrou em contato, recebeu todo o apoio,
curou-se e voltou a cantar. Graças aos seus altos cachês, refez
as suas economias e decidiu doar parte de sua fortuna à obra da
fundação, inscrevendo-se como colaborador permanente. Ao receber
o contrato de adesão e ler os estatutos, constatou, surpreso,
que o presidente da Fundação Hermosa, e seu principal benfeitor,
chamava-se Plácido Domingo.
Ao investigar mais a fundo, o tenor catalão descobriu que
Hermosa havia sido fundada para cuidar especialmente de um único
enfermo: José Carreras. Plácido Domingo decidira preservar seu
anonimato para não constranger o colega a aceitar a
solidariedade de um inimigo.
Carreras viajou a Madri e compareceu a um espetáculo de Domingo.
Subiu ao palco, interrompeu a apresentação, ajoelhou-se aos pés
dele e agradeceu-lhe publicamente o seu restabelecimento.
Inspirado no exemplo de Domingo, pouco depois Carreras
inaugurou, em Barcelona, a Fundação Internacional José Carreras
para a Luta contra a Leucemia (info@fcarreras.es).
Mais tarde, um jornalista perguntou a Plácido Domingo por que
havia criado a Fundação Hermosa para beneficiar um inimigo e
concorrente nos palcos. O tenor madrileno respondeu: "Uma voz
como a dele não pode calar".
* Frei Betto é escritor, autor do romance "Hotel Brasil"
(Ática), entre outros.
https://www.alainet.org/de/node/110687?language=es
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