Minha cidade

17/11/2004
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As cidades não deveriam crescer. Assim, seríamos sempre crianças, mesmo quando adultos. Se a minha cidade não tivesse crescido, eu brincaria de esconder entre as árvores plantadas na avenida Afonso Pena e veria a sombra se deitar ali no meio, entre dois extensos dentes de ferro abocanhando bondes enchifrados de eletricidade. Não haveria pressa nem nariz empinado, porque nos bondes eram todos iguais e o cobrador conhecia cada rosto, jamais cobrava duas vezes da mesma pessoa. E dominava uma arte que só ele sabia: ia e vinha no estribo sem jamais se segurar, pois tinha as mãos ocupadas com o troco. Se a minha cidade fosse ainda pequena como a conheci, a boca das casas beijaria as calçadas, exceto daquelas que se penteiam de jardins na fronte e se agasalham de arbustos. Todas as manhãs recebiam, à porta, gordos vidros de leite com olhos de cartão que, mais tarde, ganharam brilho de prata. E os jornais contavam alvíssaras, sem páginas respingadas de sangue. Os programas de auditório alegravam as rádios e a TV ainda não havia aprendido a hipnotizar multidões. As mercadorias não ficavam expostas em gôndolas de supermercados, ao alcance de qualquer mão. O produto era sagrado e, no templo solene do armazém, aromatizado por grandes sacas de grãos abertas à entrada, havia um vendedor atrás do balcão, de lápis atravessado na orelha. Ele sabia onde ficava cada coisa e enchia de feijão o saco de papel como quem derrama contas de um rosário. Porque o pecado ainda não tinha sido inventado, ele anotava tudo numa caderneta, sem pressa de ter em mãos o dinheiro. Minha cidade era um jardim botânico entre cujas árvores o casario se escondia. Entre as pernas dela corria um rio que diziam ser ³das velhas², para os meninos se assustarem e manter respeito às águas mansas. Mas quando ele embravecia, seu leito entornava por todas as bordas, agourentado. Havia uma montanha que, todas as manhãs, despertava o sol que se aninhava atrás dela. Ele piscava os olhos amarelos e começava a pintar o dia: primeiro as ruas, depois os quintais e, por fim, as janelas, que o derramava para dentro das casas. Mas havia épocas em que a montanha se recolhia debaixo do pico, hibernada qual urso, e o sol ficava esquecido. Então, o céu se cobria de chumbo ferido por lanças de ouro, que traziam na cauda o reboar do choque dos astros. Chovia séculos de tristeza, exceto para nós, crianças, cavalgando enxurradas que lavavam as ladeiras. Como as ruas eram pavimentadas de pedras, entre as quais crescia o verde, a água desaparecia sugada por uma esponja. De polícia a minha cidade tinha apenas guardas-civis, assim mesmo para velar janelas abertas em noite de calor, pois os ladrões não faziam mal a ninguém. As avenidas eram imensas, ajardinadas, e sentiam cócegas quando por acaso passava um automóvel. As mulheres sabiam bordar e pingavam limão nos olhos em dias de festa. Ninguém falava alto, o latido dos cães não competia com o canto dos galos e todo mundo se conhecia ao menos de vista. Dispensava-se currículo, bastava o sobrenome. Se a minha cidade não tivesse crescido, todos veriam que não minto: fora o tempo das águas, o céu carecia de nuvens e cegava os olhos de tão azul. E a lua tingia de mel o negrume da noite, adoçando enamorados. Havia praças perfumadas de flores e nos coretos tocavam flautim e tuba. Ninguém viajava sem o cortejo da parentada de olhos marejados na plataforma da estação ferroviária. Os pardais da minha cidade não eram mudos; guardavam silêncio. E todo alvorecer a passarada fazia uma algazarra danada, eriçando o vento. As esquinas, redondas, enfeitavam-se de crianças. Sobre os telhados rubros erguiam-se igrejas de torres altas onde os sinos levantavam saias para provar macheza. O entardecer embevecia, pois ainda a fúria dos edifícios não seqüestrara o céu, e o horizonte banhava-se em aquarela: primeiro, o amarelo esmaecendo seus tons alegres; depois, o laranja tendendo para o azul escuro; enfim, a curva do mundo naufragada num mar vermelho que aos poucos se tingia de violeta, até que a noite emergisse aveludada, salpicada de brilhantes. A minha cidade cresceu. Será que também cresci? Minha avó, que conhece todos os mistérios, diz que não, apenas me alarguei para cima e para os lados. E me ensinou o caminho para eu voltar à minha cidade: escondo-me na memória e, lá dentro, brinco de menino na cidade que não mudou.. * Frei Betto é escritor, autor de ³Gosto de uva² (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/110881?language=es
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