Fundamentalismo cristão
17/11/2004
- Opinión
O fundamentalismo sempre existiu nas tradições
religiosas. Ele consiste em interpretar literalmente o
texto sagrado, sem contextualizá-lo, extraindo deduções
alegóricas e subjetivas como a única verdade
universalmente válida. Para o fundamentalista, a letra da
lei vale mais que o Espírito de Deus. E a doutrina
religiosa está acima do amor.
Escolas do Sul dos EUA, e também no Estado do Rio de
Janeiro, rejeitam os avanços científicos resultantes das
pesquisas de Darwin e ensinam que o homem e a mulher
foram criados diretamente por Deus. Tal visão
fundamentalista nem sequer reconhece que Adão, em
hebraico, significa ³terra², e Eva, ³vida². Como os
autores hebreus do Antigo Testamento não raciocinavam com
categorias abstratas, à semelhança da gente simples do
povo, o conceito ganhou plasticidade no ³causo² de Adão e
Eva.
Todo fundamentalista é, a ferro e fogo, um ³altruísta².
Está tão convencido de que só ele enxerga a verdade que
trata de forçar os demais a aceitar o seu ponto de
vista... para o bem deles! Há muitos fundamentalismos
em voga, desde o religioso, que confessionaliza a
política, ao líder político que se considera revestido de
missão divina. Eles geram fanáticos e intolerantes. O
mais próximo de nós, brasileiros, é o que vigora no
governo dos EUA, convencido de que promove o bem contra
as forças do mal, utilizando armas letais no extermínio
do povo iraquiano e tratando os homossexuais como doentia
aberração da natureza. Uma das melhores conquistas da
modernidade é a separação entre a Igreja e o Estado. Nada
de papas coroando reis, como na Idade Média, ou de
presidentes consagrando a nação ao Sagrado Coração de
Jesus, como há poucas décadas ocorria na Colômbia.
Certa vez perguntei a Fidel por que em Cuba o Estado e o
Partido eram confessionais. Ele estranhou: ³Como
confessionais?² ³Sim, expliquei, pois são oficialmente
ateus. E negar a existência de Deus é tão confessional
como afirmá-la.² Mais tarde, o Estado e o Partido
Comunista cubanos tornaram-se laicos, assim como todos os
estados e partidos modernos.
Reger a vida política a partir de preceitos religiosos é
um desrespeito a quem professa outra religião ou nenhuma.
Isso não significa que um cristão deva abrir mão de suas
convicções e dos valores evangélicos. Mas ele não deve
esperar que todos reconheçam a natureza religiosa de sua
ética. E nem queira impor a sua fé como paradigma
político.
Há que cuidar também para evitar o fundamentalismo
laicista, de quem julga que religião é uma questão
privada, sem dimensão social e política. Afinal, todos os
cristãos são discípulos de um prisioneiro político... O
fundamentalismo laicista, que sempre relegou a religião à
esfera da superstição, é danoso por estimular o
preconceito e não reconhecer que milhões de pessoas têm
em sua fé o paradigma de suas convicções e práticas.
Corre-se o risco de repetir o erro dos antigos partidos
comunistas, que exigiam dos novos militantes profissão de
fé no ateísmo.
Reforçam o fundamentalismo cristão todos os que são
indiferentes ao diálogo inter-religioso e consideram a
sua igreja como a única verdadeira intérprete dos
mandamentos e da vontade divinos. Por isso, é importante
estabelecer os critérios éticos que propiciam a base
sobre a qual as diferentes igrejas e religiões devem
dialogar e somar esforços. São eles: a ética da
libertação num mundo dominado por múltiplas opressões; a
ética da justiça nessa realidade estruturalmente injusta;
a ética da gratuidade nessa cultura mercantilista onde
imperam o interesse e o negócio; a ética da compaixão num
mundo marcado pela dor de tantas vítimas; a ética da
acolhida, já que há tantas exclusões à nossa volta; a
ética da solidariedade numa sociedade fortemente
competitiva; a ética da vida num mundo ameaçado pelos
sinais de morte na natureza e nos pobres.
O fundamentalismo é irmão gêmeo do moralismo. E o
moralista é capaz de ver o mosquito no olho alheio, como
observou Jesus, sem atinar para a trave no próprio olho.
No caso de certos políticos imperiais, quem sabe a
solução para a paz seja considerar a guerra um atentado
ao pudor...
* Frei Betto é escritor, autor de ³Típicos tipos
coletânea de perfis literários² (A Girafa), entre outros
livros.
https://www.alainet.org/de/node/110909?language=es
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