Sob as águas...
03/01/2005
- Opinión
Já os fogos de artifício se preparavam para iluminar os céus na noite de Ano Novo. Nas geladeiras das casas abastadas, as garrafas de champanhe gelavam buscando a exata temperatura para deslizar nas gargantas juntamente com os beijos, abraços, pés direitos levantados e abaixados, sorrisos de alegria e desejos de felicidades. Já a euforia de deixar para trás um duro e violento 2004 tomava conta de todos, com as esperanzas postas em um 2005 que só poderia ser melhor. Foi quando o gorgolejo das ondas gigantes começou a fazer-se ouvir, ameaçador como um trovão, o fundo do mar rachou-se ao meio e nove países do sudeste da Ásia se viram afogados sob as águas assassinas. Nada foi poupado: construções, edifícios, sofisticados ³resorts², casas humildes. E, sobretudo, pessoas. Gente. Corpos humanos que após o abraço fatal das águas cataclísmicas desapareceram ou foram devolvidos sem vida, boiando no mar lamacento ou enlodaçado em que se transformaram o que antes eram aprazíveis praias com areia branca, mar azul e coqueiros verdes. O número de vítimas sobe a cada dia. Começou em três mil, já chega perto de cem mil. E entre mortos e desaparecidos, provavelmente ainda viveremos boa parte do ano de 2005 realizando a triste contagem, que crescerá a cada dia, quando mais uma vítima aparecer ou for encontrada ou reconhecida e identificada. Corpos ainda se amontoam por praias, ruas e portos de vários países, onde sobreviver ao caos deixado por uma das piores catástrofes da História recente tornou-se o maior e mais instigante desafio. As imagens patéticas enchem nossas retinas preparadas para ver fogos em iridescentes acrobacias pelo céu no raiar do novo ano. Mulheres desesperadas com os braços levantados aos céus em dolorida e impotente oração. Pais carregando cadáveres de filhos - filhos jovens, crianças, adolescentes, recém-nascidos. Foram elas, as crianças, as promessas de vida ainda por desabrochar, as primeiras e fatais vítimas da catástrofe. Seus corpos franzinos e seu peso leve foram presa fácil do arrastão inclemente das águas que a tudo submergiram e arrastaram. Alguns conseguiram milagrosamente escapar. Isolados em árvores ou flutuando em destroços, foram protagonistas do verdadeiro milagre de sobreviver. Mas os dias que têm pela frente são, na verdade, extremamente sombrios. Órfãos, perdidos e marcados para sempre, não conseguem sentir diante de si o futuro risonho e promissor que sua pouca idade lhes permitia esperar. Os rostos dos pais, quando não curvados sob os corpos dos filhos, como tentando arrancar-lhes um derradeiro sopro de vida, fitavam desorientados e perdidos as pessoas à sua volta, perguntando com a boca e os olhos um profundo e irrespondível ³Por quê²? Por que eu, por que nós, por que meu filho, por que aqui, por que agora? Que sentido tem tudo? A vida, minutos atrás, parecia despreocupada e sem ameaças; agora vem esta hecatombe que arrasta em segundos o que temos de mais caro no mundo. Por quê? Em meio aos destroços, voluntários de todos os lados e procedências remexem com as mãos as ruínas à procura de sinais de sobreviventes ou buscando corpos para enterrar. O terror ainda continua. Agora, sob a forma de milhares de cadáveres espalhados pelas ruas e praias da Índia à Indonésia e a ameaça de doenças que a decomposição dos mesmos pode trazer. Não bastou aos sobreviventes do desastre resgatar a vida por um fio. É preciso agora enfrentar a falta de comida e as epidemias, a falta de medicamentos e a insuficiência de instrumental para recolher o lixo e os destroços, a falta de instalações adequadas para enterrar os mortos, os quais em países como a Índia atingem quantidades tais que têm que ser atirados em vala comum. Não há estradas em condições para socorrer as cidades mais isoladas. Não há máscaras cirúrgicas, pás, panos para envolver os cadáveres. Não há sepulturas. O sul da Ásia se transformou em um grande cemitério ao ar livre, onde o cheiro de putrefação lembra constantemente nossa mortalidade, nossa fragilidade e de que de barro somos feitos. O cheiro insuportável dos corpos em decomposição contamina narinas e psiquismos, levando alguns a enlouquecerem e fugirem dos locais de auxílio, interrompendo um trabalho que requer a ajuda de todos para poder ser minimamente começado. Este é o contexto onde somos chamados a desejar-nos reciprocamente Feliz Ano Novo! Já o povo bíblico identifica situações parecidas ao descrever o dilúvio que alagou a terra que, segundo o Criador, estava ³cheia de violências², salvando-se apenas Noé, sua família e um casal de cada espécie. As catástrofes sempre aconteceram na história da humanidade, deixando seu rastro de dor e seu saldo de morte. Sempre, igualmente, os seres humanos procuramos interpretá-las segundo nossa visão de mundo. As ferozes tsunamis que assolaram o sul da Ásia nos obrigam a dizer Feliz Ano Novo com ouvidos e coração abertos para aprender várias lições. Entre elas, respeitar a natureza que, se muito agredida for, acaba por voltar-se contra os humanos que tentam à força submetê-la. Ou, ainda, estimular a solidariedade que vai na contramão e sentir como sua a dor dos irmãos que padecem cruelmente do outro lado do mundo, fazendo os possíveis gestos de solidariedade de contribuições financeiras ou formas de conscientização. Ou, finalmente, procurar não viver irresponsavelmente, afogando em champanhe, música barulhenta e fogos inúteis a dura realidade do sofrimento humano que marca a passagem deste ano de 2004, durante o qual a humanidade teve que suportar tanta guerra, tanta desgraça, tanta violencia e ainda tem que, agora, procurar emergir de sob as águas e flutuar em direção a um futuro um pouco melhor para as vítimas de toda espécie em 2005. * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro De Teologia e Ciências Humanas da PUC- Rio
https://www.alainet.org/de/node/111066?language=en
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