Ela
23/12/2004
- Opinión
Ela era uma menina bóia fria, que trabalhava com o pai na
lavoura, em trabalhos pesados para qualquer ser humano, ainda
mais para ela, com seus 10 anos. Um dia se cansou, resolveu
procurar outros destinos. Entrou para um convento, acreditando
que poderia fugir daqueles tormentos cotidianos.
Uma manhã um padre convidou-a a acompanha-lo, porque ele ia
rezar uma missa em um lugar muito especial. Ela se vestiu, se
arrumou e seguiu o padre. Era um acampamento dos trabalhadores
sem terra. A menina se encantou com aquela gente, com aquela
vida, com suas escolas, seu trabalho, sua luta. Nem acompanhou o
padre de volta ao convento. Ficou ali mesmo.
Ficou e tornou-se uma sem terra. Ou melhor, uma participante da
luta dos trabalhadores sem terra pela terra para todos, pela
escola, pelo resgate da sua identidade, da sua cultura, da sua
dignidade. Ela ficou, passou a estudar, a trabalhar e participar
da luta deles.
Depois de seguir os estudos básicos ela prestou vestibular e
passou a fazer o curso de direito. Casou-se com um trabalhador
sem terra, os dois têm uma linda filhinha. Um dia eu a encontrei
em um aeroporto internacional do Brasil, retornando da Europa,
onde tinha ido, muito orgulhosa, representar o MST.
É um dos tantos casos de resgate da dignidade de brasileiros
feita pela luta dos trabalhadores sem terra. E, no entanto, eles
costumam ser tratados pela mídia como se fossem portadores de
violência e não vítimas, portadores do caos e não da esperança,
de arbitrariedade e não de escolaridade. São criminalizados,
quando deveriam ser reconhecidos, exaltados e receber a gratidão
da sociedade e do Estado brasileiros, por terem resgatado da
miséria, do abandono, da ignorância a centena de milhares de
pessoas.
Pessoas que morreriam anonimamente, no abandono, sem terra, sem
dignidade, sem esperança, encontram no movimento o espaço para
se transformarem em cidadãos – uma condição quês lhes foi negada
durante séculos pelo Estado e pelas elites dominantes. São
pessoas como aquela menina, como milhões que ainda sobrevivem na
penúria, submetidos à violência e à arbitrariedade do poder dos
grandes proprietários de terras e, mais recentemente, das
grandes empresas exportadoras.
Muitos são pessoas que fugiriam desse inferno para vir
sobreviver pessimamente na periferia das grandes metrópoles
brasileiras, abandonadas, marginalizadas, discriminadas. Mas que
encontram nos acampamentos um lugar para trabalhar, para
estudar, para viver dignamente.
Pode-se dizer que esse movimento contribui para a humanização
dos brasileiros pobres do campo como nenhuma outra instituição,
estatal ou não, já fez. Deve ter o reconhecimento de ter trazido
o surdo conflito social para a superfície, de forma organizada,
consciente. De ter trazido para a cidadania a milhões de
brasileiros, de crianças, de mulheres, de idosos, que começaram
a poder ler, a poder entender as raízes das injustiças que
sofreram dezenas de milhões de brasileiros desde que fomos
invadidos pelos colonizadores, a mais de cinco séculos.
O MST alfabetizou mais gente no campo do que todos os programas
oficiais de alfabetização. Seu sistema educacional inclui 1900
escolas (isso mesmo: 1900 escolas), em que estudam 160 mil
crianças e adolescentes e trabalham 4 mil professores. Dois mil
alfabetizadores trabalham com jovens e adultos. Há 10 cursos de
formação de professores, entre tantos outros.
Um milhão de pessoas vivem, trabalham e estudam nos acampamentos
rurais. Produzem sem agrotóxicos, preservam as sementes
naturais, organizam cooperativas, comercializam seus produtos,
apóiam os que ainda lutam pela terra.
Esse trabalho de resgate tem que ser reconhecido e apoiado, ao
invés de desqualificado, tem que ser divulgado ao invés de
difamado, tem que ser estendido ao invés de reprimido. Visitar
os acampamentos dos sem terra é uma das experiências mais
extraordinárias que podemos ter hoje no Brasil, recomendado
mesmo – e até especialmente – para os que têm preconceitos
contra o MST.
O MST completou 20 anos. Sua história tem que ser conhecida
de todos, tem que encontrar na mídia os espaços que permitam que
os brasileiros conheçam como os trabalhadores do campo,suas
famílias, seus filhos, vivem, se educam, trabalham e afirmam sua
identidade. Para que muitas e muitos - como aquela menina bóia
fria - possam escolher o seu destino, viver com dignidade e
encontrar o caminho da sua emancipação.
https://www.alainet.org/de/node/111078
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