É carnaval em mim
23/02/2009
- Opinión
Dentro de mim há um imenso salão colorido por confetes e
serpentinas e, entre tanto ruído, sinto medo. Medo dos
fantasmas que me povoam, dos demônios interiores, dos anjos
de asas quebradas. Beiro o abismo da ilusão e sou tomado
por vertigens e, no entanto, não aspirei lança-perfume.
Quero o baile, a fantasia, a loucura insaciada dos que
fazem desfilar em blocos seus desejos irrefreáveis. Arranco
do coração uma por uma das máscaras de minha coleção: a do
cínico, do farsante, do pusilânime. Quero-me nu,
completamente nu, na passarela em que me exibirei pelo
avesso: aversões e preconceitos, contradições e
mesquinharias. Sairei de barro e sopro, tal qual Deus me
pôs no mundo.
Estou ávido da batucada capaz de eriçar cada célula de
minha pele e, na ponta dos pés, dançarei sobre o aro do
pandeiro até que a cuíca me desperte a consciência. Abrirei
a torneira de meu televisor e deixarei que escorra pelas
escadas da casa toda a impotência das mulheres adornadas de
falsa beleza e a prepotência dos homens que não sabem
fortalecer a musculatura da alma. Cessado o burburinho
das ruas, esmaecidas as luzes, adormecidos os foliões,
atravessarei sozinho o sambódromo e recolherei pelo chão as
sombras das tristezas fantasiadas de alegria, das lágrimas
contidas no ritual do riso, das ilusões defraudadas pela
realidade. E deixarei ali os retalhos dessa descomplacência
que me atordoa o espírito, na esperança de que a magia do
próximo desfile exiba, em carro alegórico, essa represada
voracidade amorosa.
Não irei atrás do trio elétrico, a menos que ele cesse o
movimento, desligue o motor, emudeça a turba e, num gesto
inusitado, faça do silêncio a matéria-prima da festa. É
disto que preciso, avidamente: desfantasiar a subjetividade,
escutar a própria intuição, deixar que esse cortejo que me
habita ganhe as ruas, esvaziando-me de mim mesmo. Há
demasiado entulho em minhas cavernas interiores.
Se por acaso me encontrar com Momo, hei de sugerir que se
aposente. Carnaval já não é a festa da comilança que
empanturra o estômago. São os olhos que, glutões, engolem
sôfregos todos os seios e bíceps e coxas e nádegas e braços
e pernas, sedentos de narcísico reconhecimento e imprimindo
ao espírito o fastio irremediável, tão enjoativo quanto a
certeza de que, das cinzas da quarta-feira, a fénix da
esbeltez não renasce.
Se a bateria prosseguir ressoando em meus ouvidos, apelarei
a Orfeu que me empreste a sua lira e me permita mergulhar
nos mares subterrâneos de meu inconsciente. Aspiro pelo
canto inebriador das musas e prefiro a agonia solene do
órgão e a suavidade feminina da harpa aos sons desconexos
dessa parafernália eletrônica que bem traduz minhas
atribulações. Carnaval é feito de momentos e eu, de
tormentos. Devo fugir para alguma ilha deserta abscôndita
no mar revolto de meu plexo solar ou fingir na avenida que
os deuses do Olimpo vieram coroar-me? Ah, quem dera que eu
pudesse trocar de caráter a cada nova roupa, rasgar os
mantos lúgubres que não me protegem do frio, acreditar
nessa inversão de papéis que me conduz à apoteose
exatamente quando o show é obrigado a cessar.
Talvez eu entre numa roda de crianças piratas que roubem
meu estorvo e peça à Colombina não mais que um piscar de
olhos para alegrar meu Pierrô. Ao soar do apito, cantarei
solo meu samba-enredo em homenagem ao Arlequim - esse
retrato de mim.
Ao amanhecer, quando o exército da faxina adentrar, serei
encontrado estirado no asfalto, cada pedaço espalhado num
canto, à espera de que suas vassouras me juntem os cacos,
cicatrizem-me as articulações, energizem os meus ossos e
inflem a minha carne, até que eu consiga o mais difícil -
fantasiar-me de mim mesmo. Ficarei tão leve que, com
certeza, voarei sem asas, embriagado pela euforia que o
Carnaval pressente mas não sente. Sim, eu quero mais,
quero um Carnaval que nunca cesse e seja tão sem limites
que faça os mortos dos cemitérios sairem pelas ruas num
infindável cordão, entoando loas à vida, e que o brilho do
coração irradie tanta luz que traga aos meus olhos a
cegueira para o transitório. Sejam ternas e eternas as
minhas alegrias, distantes dos melindres fugidios,
entregues às mais puras melodias, às mais inefáveis poesias.
* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto
Autobiografia Escolar" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/111292?language=es
Del mismo autor
- Homenaje a Paulo Freire en el centenario de su nacimiento 14/09/2021
- Homenagem a Paulo Freire em seu centenário de nascimento 08/09/2021
- FSM: de espaço aberto a espaço de acção 04/08/2020
- WSF: from an open space to a space for action 04/08/2020
- FSM : d'un espace ouvert à un espace d'action 04/08/2020
- FSM: de espacio abierto a espacio de acción 04/08/2020
- Ética em tempos de pandemia 27/07/2020
- Carta a amigos y amigas del exterior 20/07/2020
- Carta aos amigos e amigas do exterior 20/07/2020
- Direito à alimentação saudável 09/07/2020