Patologia do poder

21/07/2005
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"O poder é afrodisíaco?", indagou o repórter Ricardo Gontijo ao general Geisel, quando este ocupava a presidência da República. O carro partiu sem que houvesse resposta. Mas seu sucessor, o general Figueiredo, não temeu reconhecer que "o demônio que assedia o poder é pródigo em tentações". Lord Acton foi mais incisivo. Declarou que "todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente". É injusto qualificar de corruptos todos que dispõem de uma parcela de poder. Mas não há dúvida de que o poder transtorna, em qualquer escala: chefes, gerentes, diretores, dirigentes sindicais, políticos ou bispos. São Paulo diria que ele atiça a concupiscência. Torna a pessoa apegada aos prazeres e facilidades oferecidas a quem ocupa posição de destaque. Para muitos, o poder é a suprema ambição. É a perversa maneira de se comparar a Deus. Vide os políticos que gastam somas bilionárias em campanhas eleitorais e, mesmo derrotados, voltam à cena, como se a sede de poder fosse proporcional à fortuna que dilapidam. Há homens que, fora do poder, sentem-se terrivelmente humilhados, expulsos do Olimpo dos deuses. Caem em depressão e, passada a ressaca, voltam à disputa pelo espaço de poder com mais garra e menos escrúpulos. Malgrado as intenções, a vida se tece em ações. E a cabeça pensa onde os pés pisam. Pouco valem as intenções de quem jura que "chegando lá não serei como os outros". Será sim, salvo honrosas e heróicas exceções, como Francisco de Assis, Gandhi e Che Guevara, que ousaram submeter seu modo de viver ao modo de pensar. Tinham princípios. Em geral, dá-se o inverso. Modificado o modo de viver de quem ocupa o poder, em pouco tempo altera-se também o modo de pensar. Pois o poder faz girar a roda da fortuna e opera na pessoa uma mudança de lugar social e cultural. Ela se vê cercada de bajuladores, recebe convites e homenagens, ganha presentes, dispõe de assessores e, sobretudo, passa a dispor de uma infra-estrutura que a reveste de uma aura especial. Troca de guarda-roupa, de casa, de amigos e de mulher ou marido. Aos olhos do comum dos mortais, aquela autoridade possui as chaves da felicidade alheia. Tem o poder de aprovar projetos, liberar verbas, autorizar obras, permitir viagens, distribuir cargos, promover pessoas, conceder bolsas, e transformar seus gestos em fatos políticos. Como é difícil, a quem já experimentou o poder, voltar a ser o que era! Vargas preferiu meter uma bala no coração a ver-se destituído de poder. O poder reduz a distância entre o desejável e o possível. Quanto maior o poder, menor essa distância. Um governador ou um ministro pode, no mesmo dia, graças à função que ocupa - e à custa do contribuinte - almoçar em Brasília, jantar em São Paulo e dormir no Rio, convencido de que suas conversas e conchavos direcionam o rumo da história... Quem se apega ao poder mira-se todas as manhãs no espelho da bruxa da Branca de Neve e não suporta críticas, pois minam sua auto-imagem e exibem suas contradições aos olhos de outrem. Daí porque se isola, fecha-se num círculo hermético ao qual só têm acesso os que cumprem suas ordens, dizem "amém" às suas idéias e palavras ou, ainda que críticos, se calam coniventes, pois tendo também suas ambições não querem ser rifados por quem possui mais poder. Assim, cria-se uma cumplicidade tácita. Temem apenas que certa imprensa saiba o que ocorre nos bastidores do poder. No entanto, agem como se copeiros, garçons, motoristas, seguranças e empregados não tivessem olhos, cabeças, ouvidos, bocas, parentes, vizinhos e amigos... Tudo se agrava, porém, quando o poder institucional vincula-se ao poder marginal, e deputados, senadores, governadores e ministros locupletam-se com arapongas, bicheiros, traficantes, torturadores, agiotas, fiéis ao adágio de que "é dando que se recebe". Então, as duas últimas letras trocam de lugar - o poder fica podre. - Frei Betto é escritor, autor de "Gosto de uva" (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/112490?language=es
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