Conversando com Deus

01/08/2005
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Na “Caros Amigos” de abril deste ano publiquei o artigo “Conversando com o Diabo”. Surpreendeu-me a repercussão entre os leitores. Agora a conversa é mais em cimaŠ ‹ Você acredita que ainda há espaço para mim? ‹ Que pergunta, meu Deus! O Senhor anda inseguro? Tem lido índices do mercado financeiro? ‹ É que as coisas na Terra mudam numa velocidade que custo acompanhar. Outrora, eu era conhecido como o Criador. Vocês agradeciam a mim o ciclo das estações, os frutos da terra, a chuva e os ventos, as águas dos rios e os peixes do mar. Qual mesa farta, criei a natureza para o bem de vocês. ‹ Sim, Senhor, sei que abusamos da oferta. No início, extraíamos dela o necessário à sobrevivência. Para não faltar, respeitávamos os seus ritmos. Depois, descobrimos como reproduzir a natureza: inventamos a agricultura e a pecuária. E o que tinha valor de uso passou a ter valor de troca. Nossa ambição de riqueza transformou a dádiva em mercadoria. ‹ O que fazem com a inteligência que lhes incuti? ­ retrucou Deus. ‹ Que diabo de avanço científico é este que deu origem à proliferação de armas nucleares, químicas e biológicas, capazes de provocar destruição em massa? Não percebem que estão destruindo a biosfera? ‹ Perdão, Senhor. Andamos enrascados num paradoxo: nosso crescimento econômico não beneficia os pobres e ainda resulta em degradação ambiental. ‹ Outrora vocês estavam submetidos à natureza ­ ponderou Deus. ‹ Havia estreita ligação entre o ser humano e o seu entorno natural. Era um caso de amor. Agora o processo se inverteu: vocês adquiriram o poder de submeter a natureza. ‹ Não era o que o Senhor queria? No sexto dia da Criação não recebemos a ordem de dominar os peixes do mar, as aves do céu e os répteis que rastejam sobre a terra? ‹ Dominar é uma coisa; violar ou estuprar é outra ­ reagiu Deus. ‹ Vocês foram longe demais: envenenaram rios e mares, poluíram a atmosfera e, agora, interferem nos processos químicos que determinam o envelhecimento orgânico e manipulam tecnologicamente os processos genéticos. Aonde pretendem chegar? Querem criar vida humana em laboratório e alcançar a imortalidade? ‹ Somos movidos pelo lucro, Senhor. Tudo que multiplica dinheiro constitui uma obsessão para nós. ‹ Vocês só sabem conjugar os verbos somar e multiplicar? E subtrair e dividir? Como ficam os pobres? ­ objetou Deus. ‹ Acabar com a fome dos pobres não traz dividendos, mas clonar seres vivos é sinônimo de muita fortuna. Antes a política comandava a economia. Agora a economia submete a política e escanteia a ética. ‹ Não percebem que a economia está pelo avesso? ­ exclamou Deus. ‹ Explica melhor, Senhor. ‹ Nunca se produziu tanto com tão poucos produtores. A tecnologia de ponta substitui o trabalho vivo, condenando milhões de famílias à informalidade no setor de serviços e outras tantas à miséria. A violência globalizou-se. A dinâmica do capital acirra uma competitividade exacerbada. Ilhas de riqueza e prosperidade estão cercadas de fome e penúria por todos os lados. Vocês não se dão conta de que promovem o dilúvio e, desta vez, sem uma arca que possa salvá-los? ‹ É verdade, Senhor, toda a nossa vida social está contaminada pela mercantilização. Ao contrário dos antigos, já não temos uma moral que sirva de raiz à nossa visão do mundo. Nem sei se temos visão do mundo. O limite do nosso horizonte é a tela da TV. Hoje vivemos numa sociedade pluralista, onde a religião também se transforma em artigo de consumo, e a ética desmorona como base de um modo de pensar e agir comum a todos. É cada um por si e Deus por ninguém. ‹ Apesar disso, continuo torcendo por todos ­ suspirou Deus. ‹ Sou Pai, mas não paternalista. Não haverei de interferir de novo na história humana, como fiz ao enviar meu Filho. Dei-lhes um mundo paradisíaco ­ um jardim. Vocês estragaram quase tudo, poluíram o lago, cortaram as árvores, espantaram os pássaros, esmagaram a grama, secaram as fontes. Agora, tratem de consertá-lo. Encontrar fundamentos ontológicos aos princípios éticos e políticos capazes de pautar a vida social e pessoal. Não faz sentido a coesão social derivar da coerção oficial promovida pelo Estado. Criei-os livres, a ponto de poderem me rejeitar e se fechar aos meus dons. Se não resgatarem a liberdade com as armas da justiça, a espiral da violência só tenderá a crescer. Retomei o início do diálogo: ‹ Por que pergunta se ainda há espaço para a sua presença? Não vê que o mundo é cada vez mais religioso? Proliferam igrejas, templos, cultos, seitas, movimentos esotéricos. O ateísmo perde fiéis, a fé está mais viva do que nunca! ‹ Não é esse o espaço que busco ­ retrucou Deus. ‹ Também a religião se torna fonte de lucro e poder. Minha pergunta é outra: há espaço para mim no coração humano? É a minha vontade que as pessoas buscam? Ou são atraídas pela vaidade, pela ambição, pelo egoísmo? Quem é capaz de me reconhecer na face de quem tem fome, está excluído e oprimido? ‹ Vou ser sincero, Senhor. Nesse sentido, não há muito espaço. Nossos corações desaprendem a orar, a ter compaixão, a promover o gesto solidário. Temo que, após ter rompido a comunhão com a natureza, estejamos agora esgarçando a família humana. E, de quebra, nossa sintonia com o Senhor. ‹ Sim, vocês me louvam com os lábios, mas não com o coração. Prestam-me cultos, mas não libertam o oprimido. Amam mais a posse que o dom. Fiquei preocupado: ‹ O Senhor vai nos deixar à deriva? Vai cancelar a sua obra, zerar a Criação? ‹ De modo algum. Por mais estúpidos que vocês sejam, não deixo de amá-los. Nem pretendo abandoná-los. Vocês haverão de aprender com os próprios erros. Espero apenas que não demasiadamente tarde. Antes que ele se fosse, indaguei: ‹ Senhor, caso queira encontrá-lo, aonde devo buscá-lo? ‹ Não precisa ir longe ­ disse ele com uma ponta de ironia. ‹ Basta um mergulho em seu mundo interior. Estou no lado avesso de seu coração. Mas prefiro que também me encontre na face dos que sofrem. - Frei Betto é escritor, autor de “Treze contos diabólicos e um angélico” (Planeta), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/112613?language=es
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