Teresa, um caso de amor

23/10/2005
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Paixões cauterizam o coração. Queimam por dentro, qual fogo que não se apaga, chama que jamais se extingue. Duram sempre, não na mesma intensidade. Conhecem o ardor e também longos períodos de desolação. Refluem, escondem-se nas dobras da alma, camuflam-se em certos períodos com a máscara da indiferença. Basta porém um toque, um lampejo de memória rediviva, um encontro, para reacender aquilo que o poeta canta interrogativamente, o que será que será, que não tem governo nem nunca terá. Há paixões miméticas, diferentes das que suscitam o desejo de posse. Centram-se em pessoas objetos de nossa admiração, às quais somos atraídos pela admiração e a vontade de imitar. É o jogador que se espelha em Pelé; o músico nos Beatles; o físico em Einstein; o ator em Marlon Brando. A fé também se alimenta dessa modalidade de paixão. Funda-se em paradigmas pessoais. Moisés, Buda, Jesus, MaoméŠ Na política, Gandhi, Churchill, Che. São personalidades singulares, talentosas, portadoras de valores que nos incutem ideais e esperança no ser humano. Permanecem vivas em nosso apreço. Entre minhas paixões miméticas destaca-se Teresa de Ávila, cuja festa a Igreja Católica celebra a 15 de outubro. Ela salvou, há 40 anos, minha vocação religiosa. A leitura de suas obras esvaziou-me o céu. Deus abandonou o trono altíssimo de minha religiosidade sociológica, fundada na meritocracia, e exilou-se no mais íntimo de mim mesmo. O temor fez-se amor. Abriu em mim uma ferida incicatrizável, essa que só a morte fecha, pois nela cessam todos os desejos. A plenitude supre todas as carências. Teresa nasceu em Ávila, Espanha, em 28 de março de 1515. Filha de família abastada, ingressou na vida religiosa aos 21 anos. Em 1554, aos 39, superou a mediocridade monástica, entregando-se à oração contemplativa. Feminista avant la lettre, incompreendida, difamada e perseguida por autoridades eclesiásticas, narrou sua experiência mística numa obra autobiográfica, O livro da vida, e ensinou a via da iluminação através de livros como Caminho da perfeição e Moradas do castelo interior. Transvivenciou aos 67 anos. Em 1970 foi proclamada Doutora da Igreja. Teresa viveu na Espanha da conquista da América, época de Las Casas e Góngora, Cervantes e Lope de Vega. Monja carmelita, até 47 anos pouco escreveu. Movida por irrefreável paixão divina, a pedido de seus confessores, relatou em seis livros, uma coletânea de cartas e algumas poesias, o modo como se deixou possuir pelo Amado. A adolescente que jogava xadrez e lia romances de cavalaria, quando adulta percorreu a Espanha fundando comunidades, nas quais centenas de moças mergulharam na aventura da busca de Deus. Encarada com suspeitas pela Inquisição, que requisitou suas obras, e pelo representante papal na Espanha, que a considerava "desobediente contumaz", Teresa jamais se considerou uma santa, pelo contrário. Ao descrever suas experiências místicas fazia questão de observar: "Como se há de entender isto, não o sei; justamente este não-entender é que me causa grande alegria". Ela resgatou dos céus o Deus medieval e, em pleno Renascimento, alojou-o no coração humano. Além do discurso teológico, quem melhor nos revela a mística de Teresa não é um teólogo, mas um pintor que lhe foi contemporâneo, El Greco, cujas obras de flamejante colorido expressam o que ela sentia e ensinava, convicta de que todo ser humano é chamado a ser, nas palavras de seu amigo João da Cruz, uma chama viva de amor. Teresa rompeu com a espiritualidade medieval verticalista, dolorista, penitencial, e arrancou dos céus o Criador que Michelangelo lá deixara ao pintar o teto da Capela Sistina. Sua espiritualidade é amorosa, libertadora, apaixonada: Esta divina prisão / de amor na qual eu vivo / faz de Deus meu cativo / e livre meu coração; / e causa em mim tal paixão / ver a Deus meu prisioneiro / que morro por não morrer. No Brasil, Teresa conta com muitos devotos, entre os quais o escritor Deonísio da Silva, que a ela dedicou uma peça de teatro. Entre nossos literatos quem mais se aproxima dela é Adélia Prado. Toda arte poética da mineira de Divinópolis é um suspiro místico de quem se sente arrebatada, transportada, iluminada, a ponto de deliciar-se ao vislumbrar a epifania divina no peixe descamado sobre a pia da cozinha. Se na vida há algo melhor que a experiência mística não me carece conhecer. Todos os poderes e prazeres e fazeres, todas as febres e saudades, toda a azáfama e espera, tudo anseia por uma só coisa, embriagar-se da água viva que a samaritana encontrou junto ao poço de Jacó. Incendiada a alma pela presença do Amado, nada mais importa, nenhuma dor faz sofrer, nenhuma ciência faz saber, toda renúncia é ganho e até a morte é bem-vinda, véu que se rompe para que a noite possa unir Amado com amada no leito nupcial. Depois, as palavras volatilizam-se. Resta o silêncio, o murmúrio ininteligível, a brisa suave que soprou sobre Elias. Pressente-se enfim, sem que a razão alcance, porque a vida é terna. - Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de ³Mística e espiritualidade² (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/113359?language=es
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