Como saber das notícias e continuar desinformado
04/11/2005
- Opinión
Nesses dias andei pensando num cidadão que acorda, nota-se vivo, cheira e perscruta o mundo à volta, e se diz:. “Sim, vejamos em que mudou o mundo de ontem para hoje”. E para disto saber procura os jornais de 28.10.2005, que, ansioso, vê e abre. A primeira página do Jornal do Brasil lhe anuncia: “Pesadelo dos Escândalos – Dirceu reage e ganha no tapetão”. A do jornal O Globo lhe fala: “Dirceu perde por 13 a 1 mas Supremo invalida a sessão”. A do O Estado de São Paulo estampa: “Dirceu perde no Conselho de Ética, mas STF invalida decisão”. E como este senhor, por destino e nascimento, é pernambucano, vai às páginas da sua terra. Diz-lhe o Jornal do Commercio: “Decisão do Supremo dá sobrevida a Dirceu”. Diz-lhe o Diario de Pernambuco: “STF adia mais uma vez a cassação de José Dirceu”. A primeira impressão desse leitor recém-acordado é que toda a imprensa, sob os mais diversos nomes, é um só jornal escrito por um só homem. Pois lê a mesma notícia nos mais diferentes periódicos. Mas como a primeira impressão nem sempre ajuda o raciocínio, passa esse leitor, que recebeu a graça de mais um dia, a entrar nas notícias, a ir além dos gritos das letras garrafais.
Na mesma ordem de leitura, começa pelo texto do Jornal do Brasil:
“A alegria dos opositores do deputado José Dirceu (PT-SP) durou pouco. Quatro horas depois de o pedido de cassação do petista ser aprovado no Conselho de Ética por 13 votos a 1, decisão do Supremo Tribunal Federal obrigou o Conselho a anular o relatório que recomendava a perda de mandato de Dirceu. De acordo com o ministro Eros Grau, o relatório aprovado ontem pelo conselho precisa ser refeito e, com isso, Dirceu poderá escapar deste primeiro processo, porque o prazo de conclusão expira em cinco dias úteis ou dez dias corridos”.
Pula então para O Globo:
“O Conselho de Ética da Câmara aprovou ontem por 13 votos a um o pedido de cassação do mandato do deputado José Dirceu (PT-SP), mas poucas horas depois a decisão foi, na prática, derrubada pelo ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao esclarecer sua liminar de terça-feira. Provocado pelos advogados de Dirceu ontem de manhã, Eros Grau respondeu à tarde, quando já se sabia o resultado da votação no Conselho, que todo o processo tinha de ser refeito por causa de erros formais no relatório”.
Para ajudar o escritor destas linhas, que não tem acesso à edição de O Estado de São Paulo na internet, desiste de ver esse jornal. Vai então ao Jornal do Commercio:
“Em um intervalo de menos de quatro horas, o deputado José Dirceu (PT-SP) passou de uma fragorosa derrota a uma parcial vitória na luta para manter o mandato. No início da tarde, por 13 votos a 1, o Conselho de Ética da Câmara aprovou o relatório do deputado Júlio Delgado (PSB-MG), que recomenda a cassação do petista. Por volta das 17h30, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Eros Grau atendeu a um pedido da defesa de Dirceu e determinou que um novo relatório seja feito, sob risco de a sessão de ontem ser anulada”.
E para responder ao bom-dia dos filhos e da mulher, que o vêem na sala com uma cara mais idiota que a de costume, encerra a pesquisa com o Diário de Pernambuco:
“STF interfere e decisão de Conselho é anulada: Mesmo com o placar acachapante a favor da cassação, o deputado José Dirceu (PT-SP) encerrou o dia com uma boa notícia. Quatro horas depois da derrota no Conselho de Ética, um despacho do Supremo Tribunal Federal (STF), na prática, anulou o que foi decidido”.
- Os fatos são os fatos - resmunga o cidadão, para espanto dos que o cercam. Ele não explica aos seus por que resmunga dessa maneira, mas nós o explicamos. A esta altura, apesar da mesma leitura sem graça, ele já não diz mais que toda a imprensa no Brasil é escrita por um só homem. Se um cometa cai sobre território brasileiro, que fazer?, a imprensa que sobreviver ao acidente há de anunciar “caiu um cometa sobre território brasileiro”. Isto é um fato. Mas não há por que os jornais de todo o Brasil, país tão grande, terem a mesma visão desse cometa. Isto é, ou deveria ser, outro fato. Neste caso, a decisão do Supremo Tribunal Federal desceu por toda a imprensa como um cometa de um só ponto de vista, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, que é: o Tribunal evita a cassação do mandato de um delinqüente. Estranho, e nosso leitor não sabe se vira a página ou se continua com o mesmo ar de idiota. Chegou a trocar as sandálias dos pés sem sentir. No tempo da ditadura militar, ele se lembra, as notícias eram todas iguais. Quando um estudante que fazia oposição à ditadura era morto, todas as notícias repetiam na íntegra a fonte, a única verdade, o comunicado oficial. Mas hoje, quando estamos numa democracia...
- Os fatos não são os fatos – mais uma vez e mais alto ele resmunga. E como um neurótico que deseja provas irrefutáveis volta à cena, à espreita, na esperança. Diz-lhe então mais fundo o Jornal do Brasil:
“A biografia que o ex-ministro sempre usa em sua defesa, foi usada contra ele por membros do Conselho de Ética. – O que pesa contra Dirceu é a biografia. É um líder nato, inconteste, e num passe de mágica, abdica disso e diz que não sabia de nada? – indagou Edmar Moreira (PFL-MG)”.
Muda para a Folha de São Paulo:
“A biografia do ex-ministro, ex-líder estudantil e ex-exilado José Dirceu, sempre evocada pelo deputado em sua defesa, foi ontem usada por membros do Conselho de Ética contra ele. A lógica: se Dirceu sempre ocupou posições de liderança, certamente saberia do esquema irregular de financiamento do PT. ‘O que pesa contra Dirceu é sua biografia. Ele é um líder nato, inconteste. E, num passe de mágica, abdica disso e vem dizer que não sabia de nada?’, disse Edmar Moreira (PFL-MG)”.
O déjà vu é claro. E em dúvida sobre a própria sanidade, o cidadão volta ao Jornal do Brasil. Então compreende que aquela sensação de já haver estado antes em determinado lugar é na verdade um déjà copiado, se podemos dizer assim: a Folhapress, agência do grupo Folha de São Paulo, presta serviço ao Jornal do Brasil, que a cita no fim. Menos mal, ele se diz, e completa: “Folhapress, déjà vu uma agência confiável”. E procura mais informação, em busca de outras fontes, que lhe esclareçam o caos em que se encontra.
- O senhor está com uma cara de entropia – diz-lhe a filha, que procura mostrar o quanto está apta para o vestibular. Nem por isso ele não vai ao dicionário, vai ao Diário de Pernambuco, que lhe define melhor a cara:
“Eros Grau mantém amizade com deputado – Indicado para o Supremo Tribunal Federal (STF) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro Eros Roberto Grau, gaúcho, é amigo do deputado José Dirceu, que compareceu à posse dele em 30 de junho de 2004, quando ainda era chefe da Casa Civil”, e mais ao fim: “A Justiça condenou Grau por suposta violação à Lei de Licitações. Ele teria se beneficiado em oito contratos com dispensa de licitação para consultoria e assessoria...”. Maior ainda é a entropia refletida na cara do cidadão. Primeiro porque os ministros do STF passam antes por indicações políticas, e se esse ministro passa por suspeita, com mais acerto são suspeitos todos os demais ministros. Segundo porque o ministro Eros Grau ganha a partir de agora uma investigação da sua vida passada em busca de indícios de atos criminosos.... É natural, afirma-se o cidadão. E como ocorre a quem possui dúvidas maiores do que pode entender, e por isso resolve o problema com uma solução precária e provisória, ele se diz: “Se votou a favor desse deputado, alguma culpa o ministro tem”.
Uma dúvida, no entanto, perdura. Em que fundamento jurídico, básico, esse ministro se apoiou no seu voto? Existe mesmo aqui algo mais que manifestação autoritária, de intromissão indevida, de favorecimento discricionário? Algumas notícias falam em “confusão jurídica”, outras em “filigrana da lei”, em adiamentos da agonia de um condenado, condenado, já, e sigamos para assuntos mais importantes. No entanto, lembra ao longe esse homem, parece haver na Constituição Federal algo consagrado a direitos e garantias como “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, ou mesmo, esse absurdo, “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. E por nada disso encontrar em toda a imprensa, de norte a sul do país, o homem deixa em repouso os jornais.
Nos próximos anos, quem sabe, talvez atinja a verdade, quando todas essas bombas, terremotos, denúncias e escândalos tiverem passado. Por enquanto andará com sua cara de idiota e de entropia.
https://www.alainet.org/de/node/113410?language=en
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