O viajante que se perdeu no mapa

02/01/2006
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Chego ao fim do ano e constato que, entre mortos e feridos, cascatas de pedras a atulhar esperanças, o grito alucinado frente à enxurrada de mazelas, estou vivo. Estar vivo é milagre constante. Por muito pouco a vida se esvai: um coágulo de sangue no cérebro, um tropeção, o vírus, o tiro, o acidente de trânsito, um acaso, o esgarçamento ético, a desprovisão moral. A cada manhã se repete o renascer. Agora sei por que o bebê faz manha à hora em que o sono começa a vencer-lhe a resistência. Teme a morte, a segregação do aconchego, o retorno às cavernas uterinas. O sono apaga-lhe os sentidos, a consciência, o (con)tato com mãos e olhares afetuosos. Crescer é dormir sem medo. Confiante de que se vai acordar no dia seguinte. Agora, confio que acordarei em 2006. Espero que não apenas do sono pós-réveillon. Também dessa letargia que me acossa, desse propósito de inconsistência que me assalta, dessa lúgubre angústia de viajeiro que, além de perder o mapa, perdeu-se no mapa. Adeus 2005. Seus algarismos somaram sete. Sete são as maravilhas do mundo e os sacramentos católicos, as notas musicais e os dias da semana, as cores e os dons do Espírito Santo. Sete é o número do infinito em tradições antigas, como infinita foi minha espera. Vi-me soterrado sob tanta indignação. A nação entrou em desértica perplexidade, esse ciclo infernal que faz atuais os círculos inferiores de Dante e o mundo diabólico do Doutor Fausto. Nesse ano que finda, por vezes me julguei um idiota dostoievskiano, entre crime e castigo, porém como se tudo dependesse da destreza semântica do jogador. Como em “Tom Jones”, de Fielding, meu idealismo factício se descosturou em realidade. Desabou o céu e me vi pisando o chão de estrelas, cujas pontas ferinas em nada evocavam a canção de Orestes Barbosa. E comunguei a dor, essa dor inconsútil que dilacera silenciosamente, um por um, os fios que, em nossa subjetividade, tecem a certeza de que o sonho é o prenúncio inconsciente de que todo real é vulnerável. Contudo, não sucumbi. Feito bambu, envergo mas não quebro. De minhas ranhuras brota delicado som de flauta. Não sou dado ao absinto e sei que a vida é uma aposta. Todas as minhas fichas estão colocadas no tabuleiro dos deserdados. Jogo ao lado dos perdedores. É apenas isto que me interessa: ao faminto, o pão e a paz. De que valem todos os poderes do mundo se não enchem um prato de comida? De que valem todos os reinos se não plenificam a alma do gosto de uva? Não sou empalhador de pássaros. Quero-os vivos, livres, o vôo arisco enrugando ventos. Quero-os saltitantes entre as flores que cultivo em meu canteiro íntimo. Quero-os gorjeando melodias todas as manhãs. Quero-os despertando-me em 2006, sem contudo me provocarem a vertigem das alturas. Bem sei que teremos ano novo de rinhas eleitorais, disputas políticas, juras de campanhas. Prefiro assim à ordem canhestra das ditaduras e ao genocídio da guerra que supõe impor democracia por força das armas. Só não sei quando o meu povo se erguerá da desolação, os jovens deixarão de ser meros espectadores, de novo ruas e praças serão ocupadas, desalojando a política de seus palácios e de suas câmaras parlamentares e tornando-a, de fato, o que sempre deveria ter sido, esse exercício coletivo de imprimir futuro ao futuro, por mais que a expressão pareça apenas uma redundância. Chega de abortos! Quero a vida despontando na cidadania inelutável, na teimosia dos inconformados, na ociosidade intemporal dos mendigos, nas mulheres condenadas a bordar dores incolores, na despossuída humilhação dos que clamam por um pedaço de terra, de chão, de casa, de direito. Tenhamos todos acesso à vida, distribuída à farta como pão quente pela manhã, sem jamais temer as intermitências da morte. - Frei Betto é escritor, autor de “Típicos Tipos ­ perfis literários” (A Girafa), Prêmio Jabuti 2005, entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/113964?language=es
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