Privatização da liberdade
16/04/2006
- Opinión
Zygmunt Bauman põe o dedo na ferida ao denunciar o limite
da liberdade na modernidade capitalista: pode-se tudo
(embora a maioria não possa quase nada), exceto imaginar
um mundo melhor do que este em que vivemos. Quando muito,
fica-se no conserto da casa, a reforma do telhado, a
pintura das paredes, sem que se questionem a própria
arquitetura da casa e, muito menos, o modo de convivência
dos que a habitam.
Os mais progressistas até admitem que, na reforma, o
quarto de empregada seja deslocado do exterior para o
interior da casa. Até aqui o limite da lógica capitalista.
Além disso, suprime-se a liberdade de quem ousa propor
que não haja quarto de empregada nem empregada. No máximo
diaristas sindicalizadas e com todos os direitos
garantidos por lei. Inclusive o acesso à casa própria.
Segundo Pierre Bourdieu, uns olham a sociedade com olhos
cínicos e, outros, com olhos clínicos. Os primeiros
julgam inquestionável o atual modelo de sociedade fundado
na apropriação privada da riqueza e dele procuram tirar
proveito, considerando justo o que reforça seus
privilégios e injusto o que os ameaça. Os "clínicos"
enxergam um palmo abaixo do chão em que pisamos e
reconhecem as intricadas relações sociais que produzem, à
superfície, tamanha desigualdade entre os 6,5 bilhões de
habitantes desta nave espacial chamada Terra.
O neoliberalismo rompeu a ponte entre a esfera pública e
a privada. Outrora, uma constelação de instituições
assegurava a ampliação e defesa dos direitos sociais:
associações, sindicatos, partidos etc. A privacidade,
reduto sagrado, só era devassada à medida que se rompia o
contrato social: abandono do lar, homicídio etc. Tudo
mais ficava entre quatro paredes ou, quando muito, caía
em "domínio público" apenas através de mexericos
interpessoais.
Agora, o privado absorve o público, graças à teoria
thatcheriana de que a sociedade se reduz ao indivíduo e à
família. De um lado, privatizam-se instituições como o
Estado (refém de seus credores privados) e os sindicatos,
confinados à negociação direta entre empregados e
empregadores, desarticulando-se categorias profissionais
e solidariedade de classe. De outro, o privado transborda
e inunda e imunda o público, como no Big Brother.
Rompem-se as quatro paredes e promove-se a inversão dos
fatores: o "cínico" anula o "clínico", de modo a
desistorizar o tempo e atomizar as relações sociais. Mais
importante do que conhecer as causas que impedem o Brasil
de crescer além de 2,3% ao ano (perde apenas para o Haiti
em todo o continente americano), é saber se Mick Jagger
arrumou nova namorada no Rio ou quem será o novo
milionário da casa alvo do voyeurismo nacional.
O tecido das relações sociais se esgarça. Crianças e
jovens, que deveriam se enfrentar no jogo educativo da
sociabilidade propiciada por turmas de rua, clubes,
equipes esportivas etc., agora se refugiam horas e horas
diante do monólogo televisivo ou informativo. Nos espaços
virtuais de comunicação internáutica, onde não se expõem
aos limites exigidos pelo convívio grupal, aprendem a
dissimular. Projetam de si mesmos uma imagem idealizada,
fantasiosa, como se a vida se desse, de fato, em dois
planos, aquele em que os pés pisam e aquele em que a
cabeça "navega". O real e o virtual.
A privatização dos bens simbólicos ("a história acabou",
apregoava Fukuyama) sonega às novas gerações o sentido
histórico da existência. "Consumo, logo existo", afirmam
os neocartesianos. Assim, o projeto de vida se reduz às
ambições de consumo (ficar rico), beleza (eternamente
jovem) e fama (ainda que por cinco minutos, como predisse
Andy Warhol).
Eis a liberdade que nos oferecem, a de escolher
diferentes marcas do mesmo produto na gôndola do
supermercado ou na vitrine das lojas. Jamais escolher um
novo modelo de sociedade em que os privilegiados não
precisem se confinar em shopping centers para fugir da
turba famélica que agride a paisagem e as pessoasŠ Um
modelo civilizatório que permita, enfim, a adequação de
nossa existência à nossa essência. Nas palavras de
Fernando Pessoa, "Ah, quem dera a perfeita
concordância/De mim comigo,/O silêncio ulterior sem a
distância /Entre mim e o que eu digo."
Resgatar o direito político à liberdade, eis o desafio se
almejamos que, no futuro, a violência não extrapole do
âmbito privado para o público. E imprimir ao exercício
coletivo da liberdade um sentido, uma direção, um
horizonte capaz de superar a grande antinomia do atual
modelo de democracia: em nome da liberdade, a maioria é
excluída do direito à justiça.
- Frei Betto é escritor, autor do romance "Entre todos os
homens" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/114897?language=es
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