“Volver”: A indestrutível força das mulheres
27/11/2006
- Opinión
Pela segunda vez em poucos dias, Almodóvar com sua câmera e seu gênio me levaram à telona do cinema. Confesso e admito que estou fascinada por sua última obra: Volver. Será pela maneira tão sedutora com que narra a Espanha da aldeia de sua infância, com as mulheres limpando os túmulos e dialogando livre e alegremente com a morte? Será pelos impecáveis diálogos que se sucedem harmoniosamente e sem afetação? Será pelo talento maduro e sólido de Carmen Maura? Ou pela beleza fulgurante, valorizada em bela atuação de Penélope Cruz? Ou ainda pela pungente e trágica beleza do tango de Gardel “Volver”, dublado pela atriz?
É tudo isso e muito mais. Saio de “Volver” uma vez mais em admiração pela autêntica maestria do diretor espanhol. Mas também pela maneira corajosa e desassombrada com que rende preito à mulher como força viva da natureza e da sociedade. Uma constante nos filmes de Almodóvar, a força dos personagens femininos explode com beleza e vigor nunca vistos.
Raimunda, sua filha Paula e sua irmã, Sole, vêm do povoado espanhol açoitado pelo vento solano que faculta incêndios e enlouquece pessoas. Com a bagagem cheia da vida mítica e solidária do interior, enfrentam Madri com seus desafios de metrópole. Intercalando idas e vindas entre a aldeia e a cidade, vivem intensamente experiências que lhes permitem dar toda a sua medida de mulheres plurais e adequadas aos tempos que correm.
Raimunda, Paula e Sole são mulheres de hoje. Filhas daquelas que há três décadas entraram em um novo ciclo histórico. Durante séculos as mulheres ocupavam sempre lugares já pré-ordenados na sociedade. Voltadas para a vida familiar e a educação e o cuidado dos filhos, seu papel era já pré-determinado e não admitia grandes mudanças. Este paradigma caducou e implodiu, e as mulheres almodovarianas dão testemunho eloqüente desta mudança epocal.
Aconteceu no mundo uma revolução gigantesca, uma emancipação do feminino que fez com que as mulheres entrassem em uma lógica nova: da indeterminação. Não há mais vias pré-traçadas que enquadram a vida feminina. Esta revolução do feminino é, talvez, o fato mais importante do século 20. Cria a mulher indeterminada, voltada ao livre governo de si mesma, que pode se cuidar e inventar sua identidade.
Trabalhando em um pluriemprego para sustentar a filha e o marido bêbado e infeliz, Raimunda é figura forte que toma sobre si dores e culpas alheias, abrindo caminho com os belos e arredondados ombros pela vida que lhe resiste ao ímpeto vital. É secundada em sua marcha triunfal pela irmã Sole que, abandonada pelo marido, não se aperta e abre um clandestino salão de cabeleireira em casa a fim de se manter e sobreviver.
A criatividade e a cumplicidade destas matriarcas de hoje se estendem até a geração seguinte, personificada na jovem Paula, assim como na mãe que volta de um passado carregado de dor e ódio para perdoar e ser perdoada. Em meio a esse clima transgressor e revolucionário, pintado de vermelho sangue com as emoções à flor da pele e os belos olhos molhados de Penélope Cruz, emergem os sentimentos profundos e os valores intactos: o amor, a honra, a fidelidade, a humildade e o perdão.
Sem nada do tom reivindicativo e amargo de um estereotipado feminismo já ultrapassado e démodé, Almodóvar dá a seu “Volver” um comovente matiz de amorosa doçura, coroando a mulher rainha não do lar, mas do mundo, que sem o seu delicado cuidado se tornará em pouco tempo insuportável lugar de viver e morrer.
- Maria Clara Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Autora de "Violência e Religião" (Editora PUC-Rio/Edições Loyola), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
É tudo isso e muito mais. Saio de “Volver” uma vez mais em admiração pela autêntica maestria do diretor espanhol. Mas também pela maneira corajosa e desassombrada com que rende preito à mulher como força viva da natureza e da sociedade. Uma constante nos filmes de Almodóvar, a força dos personagens femininos explode com beleza e vigor nunca vistos.
Raimunda, sua filha Paula e sua irmã, Sole, vêm do povoado espanhol açoitado pelo vento solano que faculta incêndios e enlouquece pessoas. Com a bagagem cheia da vida mítica e solidária do interior, enfrentam Madri com seus desafios de metrópole. Intercalando idas e vindas entre a aldeia e a cidade, vivem intensamente experiências que lhes permitem dar toda a sua medida de mulheres plurais e adequadas aos tempos que correm.
Raimunda, Paula e Sole são mulheres de hoje. Filhas daquelas que há três décadas entraram em um novo ciclo histórico. Durante séculos as mulheres ocupavam sempre lugares já pré-ordenados na sociedade. Voltadas para a vida familiar e a educação e o cuidado dos filhos, seu papel era já pré-determinado e não admitia grandes mudanças. Este paradigma caducou e implodiu, e as mulheres almodovarianas dão testemunho eloqüente desta mudança epocal.
Aconteceu no mundo uma revolução gigantesca, uma emancipação do feminino que fez com que as mulheres entrassem em uma lógica nova: da indeterminação. Não há mais vias pré-traçadas que enquadram a vida feminina. Esta revolução do feminino é, talvez, o fato mais importante do século 20. Cria a mulher indeterminada, voltada ao livre governo de si mesma, que pode se cuidar e inventar sua identidade.
Trabalhando em um pluriemprego para sustentar a filha e o marido bêbado e infeliz, Raimunda é figura forte que toma sobre si dores e culpas alheias, abrindo caminho com os belos e arredondados ombros pela vida que lhe resiste ao ímpeto vital. É secundada em sua marcha triunfal pela irmã Sole que, abandonada pelo marido, não se aperta e abre um clandestino salão de cabeleireira em casa a fim de se manter e sobreviver.
A criatividade e a cumplicidade destas matriarcas de hoje se estendem até a geração seguinte, personificada na jovem Paula, assim como na mãe que volta de um passado carregado de dor e ódio para perdoar e ser perdoada. Em meio a esse clima transgressor e revolucionário, pintado de vermelho sangue com as emoções à flor da pele e os belos olhos molhados de Penélope Cruz, emergem os sentimentos profundos e os valores intactos: o amor, a honra, a fidelidade, a humildade e o perdão.
Sem nada do tom reivindicativo e amargo de um estereotipado feminismo já ultrapassado e démodé, Almodóvar dá a seu “Volver” um comovente matiz de amorosa doçura, coroando a mulher rainha não do lar, mas do mundo, que sem o seu delicado cuidado se tornará em pouco tempo insuportável lugar de viver e morrer.
- Maria Clara Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Autora de "Violência e Religião" (Editora PUC-Rio/Edições Loyola), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/de/node/118393?language=en
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