Caros amores

14/07/2008
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Eclodem na memória do afeto as raízes da saudade. Porque há, no fundo d’alma, uma região secreta onde o amor resguarda o indelével. E você, Serjão, está lá. Habita-me o fundo do ser, cativado que fui desde 1967, quando a Realidade pautou matéria com os frades dominicanos. A ponte, Roberto Freire, o Bigode, egresso da comunidade de leigos que gravitava em torno do progressismo dominicano, colaborador do primeiro nanico de esquerda, o Brasil Urgente, fundado por frei Carlos Josaphat. A ditadura empastelou o jornal e Josaphat buscou refúgio no exílio. Bigode encontrou nova trincheira a seu agudo espírito crítico: a Realidade.

Narciso Kalili veio passar uns dias no convento. Ateu de todo, seguia à risca o método da revista: jornalismo investigativo e experimental. Nada de pautas telefônicas ou atreladas apenas a arquivos. O repórter devia encarnar o objeto de seu interesse. Como fez você, Serjão, içado da condição de editor de texto para integrar a equipe responsável por levantar a verdade sobre o preconceito racial no Brasil. O que sente um negro nesse mundo que respira branco? Pauta fácil, difícil é saber o que sente um branco (na contramão de Michael Jackson) que se transforma em negro e passa a sofrer literalmente na pele a discriminação.

Você, Serjão, se apresentou como cobaia. Foram meses de pesquisas científicas e tratamentos para que a sua pele escurecesse, sem nenhuma garantia que posteriormente voltaria à cor original. Lembro de suas idas ao Hospital das Clínicas, onde cientistas se esforçavam para enegrecer sua epiderme. O máximo obtido foi deixar-lhe umas tantas manchas no corpo.

Kalili, ateu de todo, mergulhou no mundo conventual. E pirou. De onde provinha a alegria dos frades? Aquele bando de jovens não se escafedia de madrugada para dar vazão à macheza? Nocauteado pela convivência, os preconceitos do repórter se dissiparam naqueles dias em que se revestiu de Baixinho - personagem de Henfil inspirado nos dominicanos -, atento a nos surpreender além das aparências. Constatou haver empenho sincero de corresponder à essência da fé cristã.

Bigode viu-se obrigado a retomar com Kalili seus métodos psicanalíticos. E nesse trajeto constante entre a Rua Caiubi, onde ficava o convento, e a Rua Germaine Bouchard, onde você, Serjão, era vizinho de Bigode e Gessy, acabei sendo fisgado para a revista, já que, aos ingressar nos dominicanos, abortara meu curso de jornalismo, mas não a vocação.

Era você quem mais de perto acompanhava nossas matérias. Imprimia qualidade aos textos repletos de informações. Na sala de sua casa ou no quarto aos fundos que lhe servia de escritório, cercado de crianças por todos os lados, recordo sua figura esguia, homem-bambu que enverga mas não quebra, a empunhar seu lápis implacável para corrigir nossos textos, o corte no excesso de adjetivos, no substantivo mal colocado, no tempo verbal capenga, nas conjunções intrusas, nas frases longas, irrespiráveis, pela lonjura do ponto.

Foi ali que nos tornamos cúmplices. Madrugadas infindas regadas a uísque nacional e, você, que extravasava fé no ser humano, a perscrutar-nos a alma. No nosso caso, o ateu e o crente, um confidente e confessor do outro, nossas crises e dúvidas partilhadas, e você com aquele sorriso irônico, o cigarro alerta, o porte de gentleman, no sábio exercício do método pós-cartesiano: duvido, logo haverei de alcançar alguma incerteza... Porque era assim o seu modo dialógico: refletir em voz alta, pontilhar a fala de interrogações, abrir um leque de hipóteses frente a cada desafio, sem jamais pontificar ou arvorar-se em senhor da razão.

Todo o seu ser recendia amizade. Fraternura. Da casa sempre aberta à tribo, a feijoada da Lana a expandir-se da mesa rodeada de amigos para o restaurante. Mesmo nos períodos de desemprego e penúria, você a exibir o sorriso cálido, sem jamais negociar princípios e convicções. Quixote teimoso, sonhador inveterado, sua visão, sempre voltada ao futuro, centrava-se em projetos que muitos consideravam utópicos, mas que a sua ousadia empreendedora primeiro tornava realidade para, depois, operar o milagre de amealhar recursos.

Nosso último encontro foi no Domingo de Páscoa. Você estava semiconsciente. Instiguei-o a resistir, falei de quanto ainda haveríamos de comungar juntos em torno de uma boa cerveja, dei-lhe a bênção. Você meneava a cabeça, como que assentindo, e me fitava com os olhos dilatados.

Três dias depois, a notícia de sua transvivenciação. A morte. Amor/te. É o melhor que você fez e ensinou a todos os caros amigos e amigas: amar. Saravá!

- Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.

A reprodução só pode ser feita mediante autorização por escrito de Frei Betto.


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