Literatura e experiência de Deus

07/05/2009
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A

Pela literatura, o verbo se faz carne. Embora   a música seja, na minha opinião, a mais sublime das artes, a  literatura é a  mais sagrada. Deus a escolheu para, através dela, se  revelar a nós. Escolheu  uma escrita, a semítica, e um gênero próximo  da ficção, pois em toda a Bíblia  não há uma única aula de teologia, um  ensaio doutrinário, um texto conceitual.  É toda ela uma narrativa  pictórica – vê-se o que se lê.  

Os livros bíblicos reúnem uma sucessão de fatos   históricos e alegóricos (parábolas, metáforas, aforismos), entremeados  de  genealogias, axiomas, provérbios, poemas (Cântico dos  Cânticos e  Salmos) e detalhes técnicos e ornamentais (a  construção do Templo cf.  2 Crônicas).

Como frisa Herbert Schneidau, a Bíblia pode ser   considerada “prosa de ficção historicizada”. Historicizada porque se  distancia  do universo das lendas e dos mitos, embora haja  matéria-prima lendária  subjacente ao Gênesis no relato sobre  Davi, na saga de Jó e em parte  dos Livros dos Reis.  

Os autores bíblicos se afastaram,  deliberadamente, do  gênero épico (Homero e Virgílio), o que se explica  pela rejeição do  politeísmo. O que impregna a escrita bíblica é o  senso de historicidade. Ela  rompe com a circularidade do mundo  mitológico e apresenta-nos um Deus que tem  história: Javé, o Deus de  Abraão, Isaac e Jacó. Nela a historicidade se faz  presente na  descrição dos cinco primeiros dias da Criação, antes do surgimento   daquele que viria a ser considerado o protagonista do processo  histórico: o  ser humano. Há uma evolução, simbolizada na sucessão dos  seis  dias.

O que faz de nós imagem e semelhança de  Deus é  a capacidade de amar e a linguagem. Animais também amam, tanto que   certos pássaros, como os pardais, se mantêm fiéis após se acasalarem.  Mas  somente o ser humano possui um nível de consciência que lhe  permite ordenar e  expressar sentimentos, emoções, intuições e afetos.  Isso nos faz semelhança  divina. Deus é amor e seu afeto por nós se  manifesta na linguagem contida na  narrativa bíblica e na epifania do  Verbo que, entre nós, se fez carne.  

A escrita é uma forma de tentar organizar o caos   interior. Por isso, todo artista é clone de Deus. A escrita é  terapêutica,  libertadora. Hélio Pellegrino, psicanalista, atribuía a  minha sanidade mental  no decorrer de meus anos de prisão ao fato de eu  ter literalizado a vida de  cadeia. O meu mundo é recriado quando lanço  mão de vocábulos e regras  sintáticas para dar forma e expressão ao que  penso e sinto. Assim,  transubstancio a realidade, projeto-me em algo  que, fora de mim, não sou eu e,  no entanto, traduz o meu perfil  interior de um modo que eu jamais conseguiria  pela simples  fala.

A escrita constitui uma forma de  oração, como bem  sabia o salmista. A experiência de Deus antecede e  ultrapassa a escrita. No  entanto, o pouco que dela se sabe é por meio  da escrita; raras vezes por  experiência pessoal. Grandes místicos,  como Buda, Jesus e Maomé, nada  escreveram. O que sabemos deles e de  seus ensinamentos é graças a quem teve o  trabalho de  redigir.

Ainda que o próprio místico possa  fazê-lo, como são  exemplos Plotino, Mestre Eckhart e Charles de  Foucauld, há um momento em que a  experiência de Deus ultrapassa os  limites da palavra. É inefável. Como diz  Adélia Prado, “Se um dia  puder, nem escrevo um livro” (Círculo). “Não  me importa a  palavra, esta corriqueira, / Quero é o esplêndido caos de onde  emerge  a sintaxe, / A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda /   foi inventada para ser calada. / Em momentos de graça,  infrequentíssimos, / se  poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. /  Puro susto e terror (Antes do  nome).

João da Cruz, patrono dos poetas  espanhóis,  deixou três de seus quatro livros inacabados. Tomás de Aquino   considerou, após seu êxtase em Nápoles, que toda a sua obra não  passava de  “palha”. E não mais escreveu.

Há no enfoque adeliano uma empatia com o poema   Ash-Wednesday (Quarta-feira de Cinzas), de T.S. Eliot,  escrito  em 1930, três anos após a conversão do poeta ao cristianismo.  Na quinta parte,  Eliot canta que “a palavra perdida se perdeu”, “a  usada se gastou”, mas  perdura no “Verbo sem palavra, o Verbo. Nas  entranhas do  mundo”.

Toda poesia de qualidade é polissêmica. É   verso que faz emergir nosso reverso. É canto que encanta, desdobra em  múltiplo  o nosso ser e nos induz a encontrar aquela pessoa que  realmente somos e, no  entanto, em nós reside como um estranho que  provoca temor e  fascínio.

É à poesia que o apóstolo Paulo recorre   quando, no discurso no Areópago (Atos dos Apóstolos 17, 28),  expressa a  nossa ontológica e visceral união com Deus: “Nele vivemos,  nos movemos e  existimos, como alguns dos vossos, aliás, já disseram:  ´Porque somos também de  sua raça´.”

Trata-se de uma citação livre da obra   Fenômenos, de Arato, poeta que viveu na Cilícia no século III  a.C. O  texto originário é: “Comecemos com Zeus, de que nós mortais  nunca
deixamos  de lembrar. Porque toda rua, todo mercado está cheio  de Zeus. Mesmo o mar e o  porto estão cheios da divindade. Em todo  lugar todo mundo é devedor a Zeus.  Porque somos, na verdade, seus  filhos... (Phaenomena  1-5).”

- Frei Betto é escritor, autor, em  parceria  com Marcelo Barros, de “O amor fecunda o Universo – ecologia e   espiritualidade” (Agir), entre outros livros.

https://www.alainet.org/de/node/133654?language=es
America Latina en Movimiento - RSS abonnieren