diz Moniz Bandeira

"Crise é sistêmica e epicentro está nos EUA”

30/07/2010
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 Segundo o cientista político, a situação da moeda estadunidense é pior do que a do euro

O cientista político e historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato acerca da crise na Europa. Moniz Bandeira aponta que a crise europeia tem origem no sistema financeiro dos EUA e os reflexos têm aparecido mais na Europa, até por conta de as agências de avaliação de risco terem sede em Wall Street.

Confira a entrevista abaixo.

Brasil de Fato - A atual crise na Europa faz repensar se "valeu a pena" a constituição da União Europeia? Dá para avaliar se a UE ainda promove mais ganhos do que perdas para os cidadãos europeus?

Luiz Alberto Moniz Bandeira - Não se pode discutir se “valeu ou não” a constituição da União Europeia. Constituiu uma consequência natural do desenvolvimento do capitalismo, decorrente de uma necessidade histórica, tal como, na segunda metade do século XIX, processou-se formação dos Estados nacionais, com a superação dos Estados pequenos, das formas débeis de Estado, geradas na época da economia natural e da economia simples de mercado, pelo Estado unitário. Essa questão eu exponho detalhadamente em dois dos meus livros: “Brasil, Argentina e Estados Unidos (Da Tríplice Aliança ao Mercosul)”, cuja 3ª edição a Editora Civilização Brasileira acaba de lançar, e “Formação do Império Americano (Da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque)”, no qual demonstro que, conforme Kautsky previra, a guerra mundial compeliu as potências imperialistas a formar uma federação, e o capitalismo entrou em nova fase, marcada pela transferência dos métodos dos cartéis, para a política internacional, a fase do ultra-imperialismo, e a transferência das guerras para a periferia do sistema. A crise da União Europeia é uma crise global, cujo epicentro está nos Estados Unidos.

Na sua opinião, quais são os principais motivos para a crise mundial ter impactos mais duradouros na UE do que em países como o Brasil e até mesmo os EUA?

A economia capitalista mundial é um todo e não uma soma de economias nacionais. Ela envolve não só as potências industriais, como também os países em desenvolvimentos e os mais atrasados.

Porém os impactos agora são mais visíveis na União Europeia em larga medida devido à especulação das agências de classificação de risco, quase todas ou todas sediadas em Wall Street e sob o controle dos bancos de investimentos dos Estados Unidos.

A crise na Grécia e em outros países da eurozona refletiu a sobrevalorização do euro, devido exatamente à elevada desvalorização do dólar, e isto dificultou as exportações dos países mais débeis como Grécia, Irlanda e Portugal, em meio a outros fatores como irresponsabilidade fiscal, descontrole dos gastos públicos, elevados déficits orçamentários, déficit comercial, corrupção, inflação e estancamento econômico.

Daí que é difícil prever, devido aos seus múltiplos aspectos, inclusive sociais e políticos. É uma crise sistêmica e, como disse, o epicentro está nos Estados Unidos. O Brasil naturalmente tem problemas. Mas a rigorosa política econômica e financeira do governo Lula, mantendo regidamente a responsabilidade fiscal e contendo a inflação, concorreu para evitar que sofresse maiores consequências da crise financeira global. Ademais o Brasil somente exporta cerca de 13% de sua produção e diversificou, com a sua política externa, os mercados no exterior. Atualmente exporta mais para os países em desenvolvimento do que para a Europa e os Estados Unidos, regiões mais diretamente afetadas pela crise.

Esta crise é a mesma crise de 2008? Em outras palavras, a origem da crise está na EU ou no mercado financeiro internacional?

A erupção da crise, que abala toda a eurozona (16 dos 27 Estados-membros da União Europeia e outros nove não-membros da UE que adotam o euro), constituiu um desdobramento, a terceira etapa da crise econômica e financeira deflagrada nos Estados Unidos, com a explosão do mercado imobiliário, no primeiro semestre de 2007, quando grandes corretoras, como Merrill Lynch e Lehman Brothers, suspenderam a venda de colaterais, e em julho do mesmo ano, bancos europeus registraram prejuízos com contratos baseados em hipotecas sub-prime. Em seguida, setembro de 2008, a crise atingiu o setor bancário, com a bancarrota e a dissolução do Lehman Brothers, o quarto banco de investimento dos Estados Unidos. E comprometeu e envolveu, finalmente, os próprios Estados nacionais. Levou a Islândia, cujos bancos mantinham negócios num valor três vezes maior do que o PIB do país, a uma virtual bancarrota, com reflexo sobre o Reino Unido, seu principal credor. E, em fins de 2009, manifestou-se na Grécia, ameaçando a estabilidade de toda a Eurozona, dado que vários países não cumpriram as metas do Tratado de Maastricht para a unificação monetária, entre as quais controle do déficit orçamentário (até 3% do PIB),do endividamento público (até 60% do PIB).

O fim do euro está em debate na UE?

Não está em debate o fim do euro. Sua instituição, como moeda única, resultou da crise de câmbio estrangeiro que atingiu a Europa nos primeiros anos da década de 1990, quando fluxos especulativos quase destruíram o mecanismo anterior de taxas de câmbio "fixas mas adaptáveis". Há problemas, naturalmente, que decorrem da moeda única adotadas por 16 países, cujas práticas políticas, leis, necessidades, dimensões econômicas e governos são diferentes. Se cada um desses países ainda tivesse a sua própria moeda nacional, poderia desvalorizá-la, se sua economia fosse mal administrada, sem responsabilidade fiscal, e sofresse um ataque especulativo. Porém, com a substituição das moedas nacionais, que os próprios Estados nacionais podiam emitir, pela moeda única, o euro, a desvalorização tornou-se impossível. É difícil, portanto, administrar uma moeda única, sem um poder central, dado que a existência de assimetrias, sobretudo econômica, e os governos nacionais podem tomar decisões financeiras, em virtude de pressões sociais e políticas domésticas ou de outros fatores. A perspectiva mais viável é a submissão dos Estados de economia mais débil, como Grécia e Portugal, às políticas fiscais da Alemanha e França, com a adoção de critérios rígidos de convergência, para monitorar, sobretudo, as taxas de inflação, as finanças públicas e a estabilidade monetária. E é preciso observar que o euro, instituído pelo Tratado de Maastricht (1992), embora vítima dos especuladores, ainda está mais valorizada que o dólar, moeda sem qualquer lastro, cuja tendência é declinar cada vez mais. Enquanto o aumento das reservas oficiais em euros cresceu 27% do total mundial em 2008, uma elevação de 18% em uma década, no mesmo período, a parcela dessas reservas em dólares caiu de 71% para 63%. E o dólar, após desvalorizar-se 40% entre 2002 e 2008 e fortalecer-se 20% em relação ao euro, entre março e dezembro de 2008, durante a crise financeira, voltou a cair 20%, entre março e dezembro de 2009, devido à preocupação no mercado com a dívida externa dos Estados Unidos. A revalorização do dólar apenas refletiu a crise da Eurozona. Foi conjuntural. O dólar está estruturalmente debilitado pelos déficits fiscal e cambial e pela elevada dívida externa líquida dos Estados Unidos. A perspectiva é de que, mais dias menos dias, deixe a condição de única moeda internacional de reserva, apesar da China e de serem os Estados Unidos o centro do sistema capitalista mundial.

Qual tem sido o papel de partidos de esquerda na Europa diante dessa crise?

Conforme o grande historiador Eric Hobsbawm disse entrevista à agência de notícias Telam, da Argentina, “já não existe esquerda tal como era”, seja social-democrata ou comunista. Ou está fragmentada ou desapareceu. Não há contraste, não há virtualmente oposição. As diferenças consistem somente no matiz dos partidos. Diversos fatores econômicos e sociais produziram, sobretudo nas potências industriais, certo esmaecimento das contradições políticas e ideológicas entre os partidos políticos, cujas iniciativas, no governo, não muito discrepam, na Alemanha, França, Inglaterra, muito menos nos Estados Unidos, onde os Partido Democrata e o Partido Republicano, essencialmente, pouco se diferenciam.


O Estado de Bem-estar social corre o risco de deixar de existir depois da crise, diante dos pacotes econômicos de caráter neoliberal?

A existência de poderoso exército industrial de reserva debilitou o poder de negociação dos sindicatos, cuja articulação política, restrita aos limites de seus respectivos Estados nacionais, não acompanhou o desenvolvimento da organização transnacional capitalista, que permite às grandes corporações, com subsidiárias nos novos países industrializados, contar com amplos recursos para resistir às pressões e minimizar os efeitos de qualquer paralisação do trabalho. O deslocamento da produção para os países com níveis salariais mais baixos, as diferenças de condições sociais e políticas, bem como dos níveis de organização obstaculizam, por exemplo, o êxito da coordenação internacional de uma greve, com o objetivo de paralisar, simultaneamente, todas as unidades de produção da mesma empresa espalhadas por diversos países. E o poder dos sindicatos foi ainda mais enfraquecido pela expansão do mercado global de trabalho, com o aparecimento de 1,2 bilhão de novos trabalhadores e de outros milhões dispostos a trabalhar por qualquer salário, para ter um meio de subsistência. Porém, é muito pouco provável, difícil mesmo, acabar totalmente com o Estado de bem-estar, em virtude de suas terríveis consequências políticas, com a desestabilização dos regimes na União Europeia e na Europa em geral.

 Fonte: Brasil de Fato

 

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