José Comblin: o legado de um profeta

07/04/2011
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A Igreja brasileira vive na saudade o luto por José Comblin, morto aos 88 anos, no dia 27 de março. Belga de nascimento, brasileiro por adoção, latino-americano por vocação, esse missionário que deu sua vida junto aos pobres e sofredores do sul do Equador deixa um vazio nestes nossos tempos carentes de profetas. Sua voz de fogo e sua razão clara e lúcida certamente provocam imensa nostalgia.

O Padre José, como era carinhosamente chamado pelo povo nordestino a quem servia, nasceu em Bruxelas, em 1923. Foi ordenado sacerdote em 1947 e obteve o título de doutor em Teologia pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica. Onze anos depois de ordenado, em 1958, Comblin desembarcou em Campinas. Aqui foi assessor da JOC (Juventude Operária Católica) e professor da Escola Teológica dos Dominicanos em São Paulo, tendo como alunos alguns frades notáveis na história brasileira como Frei Betto e Frei Tito Alencar Lima, este torturado barbaramente nos cárceres da ditadura militar brasileira, o que o levou à depressão e ao suicídio na França.

Posteriormente lecionou na Faculdade de Teologia do Chile, mas voltou para Recife a convite de Dom Helder Câmara, onde foi professor do famoso ITER (Instituto de Teologia do Recife), pondo em prática iniciativas criativas para colocar a teologia ao alcance do povo mais pobre do meio rural. Organizou muitos seminários rurais em Pernambuco e Paraíba e ali encontrou inspiração e base para uma Teologia da Enxada.

Por suas idéias e prática, Pe. Comblin passou a ser persona non grata para o regime militar e foi expulso do Brasil, em 1971. Exilou-se no Chile por oito anos. Dali foi também expulso pela ditadura de Pinochet, em 1980. Voltou ao Brasil e radicou-se na Paraíba, dedicando-se à formação de seminaristas rurais e animadores de comunidades eclesiais de base. Alternava essa práxis docente e reflexiva em meio aos pobres com aulas no curso de pós-graduação de missiologia na PUC de São Paulo.

Ouvir José Comblin falar era um privilégio. Comprometido com a verdade, sem fazer nenhuma concessão neste ponto, abria sua boca de profeta e deixava-nos muitas vezes desconcertados e perplexos. Não poupava críticas a uma Igreja que, no entanto, amava com paixão. E a violência da crítica dava a medida do amor. No entanto, era muito consciente de que a Igreja estava a serviço do Evangelho de Jesus, seu amor maior. E fazia questão sempre de recordar isso.

José Comblin tinha uma grande esperança eclesial: os leigos. Acreditava nos cristãos batizados que recebiam do Espírito carismas e ministérios, e se entregavam ao serviço de sua fé. E por isso criou vários movimentos missionários leigos, na Bahia, na Paraíba, em Tocantins e outros pontos do Nordeste brasileiro.

As reuniões da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião não serão mais as mesmas sem sua presença lúcida, profética e sábia. Cercado pelos jovens teólogos de todo o Brasil, Comblin sorria e respondia a cada pergunta com atenção e simplicidade, como era seu estilo. Seu pensamento encantava e impunha respeito, mesmo se dele se discordava. Era um mestre, sem sombra de dúvida.
Encontrei-o pela última vez em março de 2010 em El Salvador, no congresso teológico que celebrava os 30 anos do martírio de Monsenhor Romero. Caminhamos juntos com milhares de outros peregrinos até a catedral onde celebramos a memória do mártir.

Ali me disse que agora morava em Barra, na Bahia. Explicou-me com uma pureza cheia de simplicidade e por isso mesmo mais comovente que sentia estar perto da morte. E que por isso necessitava converter-se. E nada melhor para converter-se do que estar perto de um profeta. Por isso, tinha escolhido ir morar na diocese de Dom Cappio, a quem situava na categoria dos profetas. Seu depoimento comoveu-me. Ouvir aquele homem de muito mais de 80 anos buscando ainda conversão e proximidade do Senhor após toda uma vida entregue a Deus e aos pobres era realmente edificante.

A notícia de sua morte chegou-me por mensagem eletrônica de amigos. Juntamente com a dor da perda de um irmão mais velho, senti gratidão por sua vida e responsabilidade em não deixar perder seu legado de teólogo, de profeta, de servidor de Deus e de seu povo.

- Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.

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