Os fantasmas de Aécio Neves e a ameaça ao ensino público
16/10/2014
- Opinión
Foto: Faixa da União Nacional dos Estudantes na década de noventa.
Se há uma palavra que pode caracterizar Aécio Neves com precisão, esta palavra é “fantasma”. Não estou falando aqui do fato do candidato tucano ter sido CC do próprio pai aos 17 anos na Câmara Federal, quando ainda estudava no Rio de Janeiro. Nem das suas constantes ausências no Senado para visitar não Minas Gerais, estado pelo qual foi eleito e que deveria representar no Congresso, mas sim, novamente, o Rio de Janeiro.
O “menino do Rio”, como foi apelidado pela Revista Época, traz de volta ao cenário da política brasileira uma série de fantasmas que se acreditavam exorcizados, como o patrimonialismo, o nepotismo, o machismo, a violência contra as mulheres, e as privatizações, inclusive do ensino público.
Não quero perder meu tempo tratando da perda do halo ético garantido pela proteção da mídia que Aécio tenta, em vão, passar. Para isto já existe farto material disponível na rede mundial de computadores que nem a Revista Veja, nem as Organizações Globo, nem o Grupo Folha, conseguem mais esconder.
O simulacro de um suposto esquema de corrupção na PETROBRÁS se voltou contra o seu criador. E hoje a própria Folha já reconhece que há muito mais munição nos depoimentos de Paulo Roberto da Costa contra o Senador Mineiro e seus apoiadores de campanha do que contra qualquer pessoa vinculada ao Governo Federal.
Portanto, vamos ao principal. Ao debate de projetos, e aos fantasmas que ameaçam a política inclusiva instaurada por Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, e continuada com vigor por Dilma Rousseff.
Aos corruptos e aos corruptores, como já afirmou Dilma (e eu, particularmente, concordo), cabe o trabalho investigativo que vem sendo realizado, como nunca antes, pela Polícia Federal. Devemos atacar os elementos que sustentam a corrupção, dentre os quais o patrimonialismo privatista é a maior ameaça.
Como qualquer estudante universitário da década de noventa, passei boa parte da minha vida acadêmica sob a ameaça constante de privatização do ensino público, da cobrança de mensalidades e, consequentemente, da exclusão de milhares de alunos filhos da classe trabalhadora, dentre os quais sempre estive incluído.
Foram muitas mobilizações, protestos e lutas coletivas para evitar que o sonho da mudança de vida se transformasse numa decepção, dentro da espiral de exclusão social criada no Governo de Fernando Henrique Cardoso e seu séquito neoliberal, que agiam como fantoches do FMI.
Assim como as gerações predecessoras, os estudantes universitários da década de noventa tinham um medo real de perder o espaço duramente conquistado no ensino público por um ato de império do governo tucano.
Aqueles que estão assustados com a quebra da USP, da UNICAMP e da UNESP pela péssima política educacional de Alckmin, também do PSDB, devem ficar cientes de que os 08 anos de mandato de Paulo Renato de Souza à frente do MEC foram muito mais assustadores.
As universidades viviam permanentemente mendigando recursos tornados escassos, dado o esforço do governo tucano para desqualificar a imagem de excelência do ensino superior público. Felizmente a eleição de Lula derrubou esta ameaça, e aqueles que me sucederam no ensino público nunca sofreram qualquer risco de cobrança de mensalidades ou outras taxas para poderem exercer o direito fundamental de estudar.
Ao contrário, se nos 08 anos de mandato do “Príncipe dos Sociólogos” não foi criada qualquer nova instituição de ensino superior, apenas nos 12 anos de gestão petista, entre o ex-operário Lula, e a ex-guerrilheria Dilma, foram criadas 18 Instituições Federais de Ensino Superior – IFES. Exatamente 45% do quantitativo existente nos 500 anos que antecederam FHC.
Além disso, Dilma e Lula proporcionaram o ingresso de milhões de estudantes no ensino superior através do pagamento de bolsas em instituições privadas por meio do PROUNI, coisa que somente um comprometimento efetivo com a inversão de prioridades pode sustentar.
O PROUNI atendeu, desde a sua criação até o processo seletivo do segundo semestre de 2013, mais de 1,2 milhão de estudantes. Destes, 69% foram beneficiários de bolsas integrais [Dados oficiais do Ministério da Educação].
Quem viveu nos idos de FHC sabe que a única alternativa para financiamento de ensino era o FIES. E mesmo assim era necessário oferecer muito mais do que alma como garantia financeira, o que criou uma geração de endividados, isso quando conseguiam ingressar e concluir o ensino superior, posto que a burocracia e as exigências para a concessão de um financiamento iam além da capacidade de grande parte da população.
Hoje isto não existe mais. O que define o FIES não é o interesse das instituições de crédito e a remuneração do capital, e sim os resultados da qualidade do ensino ofertado pelas instituições privadas, garantindo o atendimento de 1,3 milhão de estudantes.
Portanto, Lula e Dilma, ao contrário de FHC, Aécio, Alckmin e dos intelectuais do PSDB, aumentaram o número de universidades públicas federais em 45%, criaram o PROUNI, e transformaram o FIES num programa de apoio ao ensino, e não em mais uma fonte de renda para os bancos e obstáculo ao acesso dos mais pobres à educação superior.
Ocorre que, em 29 de junho de 2014, o físico e economista Samuel Abreu Pessoa, um dos principais assessores de Aécio para política educacional, não teve o menor pudor de defender a cobrança de mensalidades nas IFES públicas.
Num texto cheio de contradições, mas que serve de base para os seguidores tucanos, Samuel Pessoa sustenta que as universidades públicas devem cobrar mensalidades, com o seguinte argumento:
“As universidades públicas oferecem dois serviços de natureza distinta, apesar de haver complementariedade entre eles. atividade de pesquisa constitui um bem público, enquanto a atividade de ensino constitui um bem privado”.
[Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2014/06/1478158-universidade-paga.shtml, Acesso em 16/10/2014].
Pessoa descarta qualquer caráter formativo de cidadania no ensino, dando a este apenas o papel de fornecedor de mão de obra para o mercado. A única possibilidade de financiamento público por ele admitida é a pesquisa descompromissada com “maiores interesses econômicos”. Entretanto, não diz qual é esta pesquisa.
O intelectual tucano trata as universidades apenas como uma entidade de programação de cérebros para posterior ingresso no mercado, e sustenta que a cobrança de mensalidades proporcionaria “maior eficiência às instituições”. Sua base teórica, como sempre, vem dos Estados Unidos, onde se sabe que, além do esforço pessoal dos estudantes para obter boas notas, ou da demonstração de um talento extraordinário para os esportes, os pais que pretendem ver seus filhos formados em uma boa universidade devem, desde o casamento, reservar um fundo composto por parte da renda familiar, muitas vezes mais de uma hipoteca sobre o próprio imóvel de residência, quando este existe.
O ensino superior público, laico e gratuito, é um legado da Revolução Francesa. Daí se espalhou para toda a Europa. São poucos os países do capitalismo avançado que não mantém o ensino superior público e gratuito, mantido pelo estado.
Contrariando a tese de Samuel Pessoa, a conceituada editora britânica Pearson, que pública a famosa Revista Economist, por meio de pesquisa realizada no ano passado, afirma que o melhor ensino do mundo é o da Finlândia, onde todos, absolutamente todos, tem acesso ao ensino público, estatal e gratuito.
“A Finlândia tem a melhor educação do mundo. Lá todas as crianças tem direito ao mesmo ensino, seja o filho do empresário ou o filho do garçom. Todas as escolas são públicas-estatais, eficientes, profissionalizadas. Todos os professores são servidores públicos, ganham bem e são estimulados e reconhecidos. Nas escolas há serviços de saúde e alimentação, tudo gratuito”.
[Disponível em http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/04/melhor-educacao-do-mundo-finlandia.html, acesso em 16/10/2014]
Diferentemente do modelo norte-americano, e seguindo a tradição nórdica, a Finlândia incentiva a colaboração, e não a competição. O resultado é o acúmulo de um capital social essencial para os excelentes resultados em termos de qualidade de vida alcançados pelo país do norte da Europa.
De acordo com reportagem de 05 de abril de 2013, do site Pragmatismo Político, nas escolas finlandesas as crianças são estimuladas a falar mais do que os professores, algo que não acontece com 85% dos estudantes norte-americanos e, pasmem, nos primeiros anos de ensino as crianças não são submetidas a qualquer teste de avaliação.
Os resultados da Finlândia deixariam qualquer conservador brasileiro com os cabelos em pé, ou com o queixo caído, pois o que se ensina nas escolas e universidades é a valorização da participação e da democracia, e não o temor à autoridade.
Isso demonstra que o necessário não é retroceder nas nossas políticas recentes de valorização do ensino público, mas avançar. E, neste ponto, a privatização pode provocar uma verdadeira tragédia social e econômica.
Mesmo que a receita neoliberal tenha fracassado em todo o mundo, e as tentativas de retorno ao modelo tenham sido ainda mais desastrosas, como nos casos da Espanha, da Grécia e da Itália, há uma insistência dos profetas do mercado financeiro em impô-lo à nossa sociedade.
Na década de sessenta, os militares, depois do golpe, fizeram um acordo com a Agência Norteamericana para o Desenvolvimento Internacional, a USAID, sigla inglesa para United States Agency for International Development, que modificou a nossa estrutura de ensino e impôs um pesado regime de autoridade que ganhou a simpatia dos golpistas, pois permitia caçar os líderes estudantis contrários ao sistema.
O objetivo inicial era privatizar o ensino, coisa que não chegou a ser implementada na prática. Contudo, matérias formativas de consciência social, como História, tiveram a sua carga horária reduzida. Filosofia, Latim e Educação Política foram extintas, e foi introduzida a triste Educação Moral e Cívica.
Os ares libertários que acompanharam a Constituição de 1988 derrubaram a tese da privatização, e o art. 206, IV, da Carta Régia diz expressamente que o ensino prestado pelas instituições públicas “deve ser gratuito”. É um direito frente ao Estado, e um princípio que deve ser respeitado.
Nas palavras do Constitucionalista José Afonso da Silva,
“A tese de que o ensino pago visa realizar a justiça social é racionalização ideológica, porque escolhe a ideologia de que o ensino particular “deve primar sobre o ensino oficial”. No fundo, portanto, a racionalização consiste na defesa da escola particular contra a escola pública nos níveis médio e superior, pois, passando o ensino oficial a ser pago, não há mais a diferença entre ensino público e o particular. Tanto fará, sob o ponto de vista dos custos dos alunos, matricular-se num como noutro. Por outro lado, logo se passará a demonstrar que não haverá mais razão para o Poder Público investir na ampliação da rede escolar média e superior, já que a rede particular terá condições de prestar esse serviço aos usuários, quando ricos mediante pagamentos do próprio bolso, quando pobres mediante bolsas de estudos que o Poder Público deverá fornecer ou ficarão sem escola, o que é mais provável” [SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 846 e 847].
Mesmo vencida, a tese da cobrança de mensalidade retornou no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que deu aquiescência aos acordos firmados com o FMI e o Banco Mundial em razão da dívida pública.
Em 1995, no auge do governo FHC, foi publicado o famoso documento do Banco Mundial chamado “La Ensiñanza Superior: las lecciones derivadas de la experiencia”.
No documento está expresso e in litteris:
“(…) Cada instución deberá poder estabelecer los requisitos de admisión, determinar los derechos de matrícula y otros cargos, y determinar los criterios que deben cumplirse para proporcioinar asistencia a los estudiantes necesitados, com el fin de assegurar que el número y la distribución de los estudiantes nuevos sea compatible com sus recursos. [...] controlar los costos reduciendo personal docente cuando la proporción entre profesores y estudantes esté por debajo de los niveles de efiencia (…)” [transcrito do próprio documento de 1995].
Mediante tradução livre:
“(…) Cada instituição deverá estabelecer os requisitos de admissão, determinar as taxas e outros encargos, e determinar os critérios a serem atendidos para a assistência a proporcionar para estudantes carentes, com o fim de assegurar que o número e a distribuição de novos alunos seja compatíveis com seus recursos. [...] controlar os custos através da redução do pessoal docente quando a relação entre professores e Estudantes está abaixo dos níveis eficiência (…) “.
Portanto, qualquer semelhança com as medidas propostas por Aécio Neves e seus asseclas, e a situação enfrentada pelas universidades paulistas na gestão de Alckmin, ambos do PSDB, e o documento do Banco Mundial, não é mera coincidência! Lembro que Paulo Renato de Souza, o Ministro da Educação de FHC, foi Secretário da Educação do Governo Alckmin até dezembro de 2010, quando foi substituído pelo atual Secretário, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, ex-reitor da UNESP.
Agrava-se a situação quando Aécio Neves também propõe a privatização da PETROBRÁS e do PRÉ-SAL, considerando que pela Lei, 75% dos recursos obtidos com os royalties da reserva petrolífera devem ser destinados para a educação. O restante para o setor de saúde.
Sendo assim, o Projeto de Aécio Neves (PSDB) é muito mais cruel com o ensino público, e vai além da privatização e cobrança de taxas e mensalidades. O candidato também propõe um modelo que deve esgotar as fontes de financiamento do ensino, o que levará a uma exclusão catastrófica das camadas menos favorecidas economicamente do ensino superior. Apenas os muito abastados terão o privilégio de um diploma universitário. Quem sabe até ressuscite-se o decreto imperial do Brasil Colônia que estabelecia que os formados em medicina e direito fossem chamados de doutores, sem fazer qualquer tipo de pós-graduação.
Se Lula e Dilma elevaram o número de universidades federais em 45%, criaram o PROUNI, o Ciência sem Fronteiras, criaram 214 novas escolas técnicas, e atenderam, só nos últimos 04 anos, 06 milhões de pessoas no PRONATEC, além da expansão das bolsas de pesquisa e de pós-graduação, Aécio Neves é um triste déjà vu. O da privatização e da quebra do ensino público, como o seu partido tentou colocar em prática na década de noventa, mas encontrou forte resistência social, e que Alckmin vem executando, de forma silenciosa, efetiva e quiçá irreversível, em São Paulo.
Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em Ciências Sociais, ex dirigente do Centro Acadêmico Ferreira Viana e do DCE da UFPel.
https://www.alainet.org/de/node/164793?language=en
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