O berço da humanidade e a sua invisibilidade para a mídia
19/01/2015
- Opinión
Crianças da comunidade e Khoisan (fonte: Utah People Post)
A África é o berço da humanidade! Foram nas regiões de Afar e do Rio Omo, na Etiópia, de Koobi Fora, Karari e Kanjera, todas no Quênia, de Olduvai e Peninj, da Tanzânia, assim como nos desertos do Marrocos e da Argélia, e na rica zona austral da África do Sul, conforme demonstram todos os estudos arqueológicos, que os primeiros passos ancestrais da humanidade foram encontrados.
Lucy, o esqueleto mais completo de um hominídeo achado por cientistas, com cerca de 3,4 milhões de anos, é um exemplar do extinto Australopithecus afarensis, da região etíope de Afar. Nesta mesma região, no fabuloso sítio de Melka Kunturé foram encontrados vestígios dos, também extintos, Homo erectus e Homo habilis.
Foi na África, na região do Khoisan (ou Khoi-san), no deserto do Kalahari, nos limites territoriais da Namíbia, Botsuana e Angola, que foi verificada a presença dos primeiros sinais do homem moderno, o Homo sapiens, que surgiu neste local há cerca de 200 mil anos, espalhando-se, posteriormente, para o mundo.
Além de berço da humanidade, a África também é berço da cultura ocidental, na medida em que tanto os romanos como os gregos foram fortemente influenciados pelos egípcios em assuntos como arquitetura, matemática, filosofia e religião. O Nilo é um dos locais onde floresceu a agricultura, demonstrando a importância do continente para o desenvolvimento da humanidade.
Antes da colonização europeia, além das organizações tribais, existiam grandes impérios no continente, com organização política e cultural mais avançada do que em vários países da Europa, como o Império Edo (ou de Benin), o Reino de Axum, o Império de Gana, o Império Iorubá, dentre outros.
Os Bronzes de Benin são uma das mais expressivas obras de arte do período pré-colonial, e chegaram a influenciar as obras de artistas europeus do século XX como Picasso, Matisse e Juan Gris. Contudo, atualmente existem mais peças no Museu Etnológico de Berlim e no Museu Britânico de Londres, países colonialistas, do que em museus da Nigéria, país que abarca a maior parte do território do antigo Império.
Embora a escravatura fosse tolerada por alguns grupos antes mesmo da chegada dos europeus, inclusive em territórios já influenciados pela cultura islâmica, de base humanista, o início do processo de colonização teve resultados devastadores em todo o continente. Comunidades que demonstravam convivência pacífica passaram a ser militarizadas e travar guerras infindáveis. Aliás, como demonstra Mike Davis, no seu “Planeta Favela”, os colonizadores incentivaram os conflitos étnicos e tribais como uma forma de manter e estabilizar as conquistas e o seu poder.
Os antagonismos permitiram uma acentuação das capturas, favorecendo o tráfico intercontinental de pessoas. Também existia uma grande preocupação com o aproveitamento das riquezas do subsolo e da biodiversidade, razão pela qual as guerras tribais também foram uma grande fonte de renda para os colonizadores europeus, que aproveitavam os conflitos para explorar as riquezas naturais e comercializar armas.
Mesmo com o surgimento dos movimentos de independência nacional entre as décadas de sessenta e oitenta do século XX, os efeitos nocivos da colonização europeia na África são mantidos até hoje, como no recorte artificial das fronteiras dos países, no tráfico de drogas, armas, metais e pedras preciosos, marfim e animais, na corrupção, nas ditaduras, nas guerras tribais, nas doenças, na falta de saneamento, na destruição da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, na pobreza e no racismo.
O regime de apartheid foi derrubado na África do Sul apenas na década de noventa do século passado. O genocídio da comunidade tutsi em Ruanda por extremistas hutus, também na década de noventa, foi fruto de anos de ódio inflado pela colonização europeia, que sempre fomentou o comando da minoria tutsi sobre a grande maioria da população do país, formada por hutus. Hoje a maior parte dos países com baixo IDH está localizada no continente africano ou no sudeste asiático, outra região que também foi colonizada por europeus até meados do século XX.
Em situação oposta, a crescente democratização do continente, e a importação de modelos de programas sociais implantados no Brasil e na América Latina vêm mudando o perfil de vários países neste século, com destaque para Gana, Zâmbia, e as próprias Ruanda e África do Sul. A última, por sinal, é integrante dos BRICS, organização político-econômica formada por países em desenvolvimento que se opõe ao modelo imposto ao resto do mundo pelo FMI, Banco Mundial, pela União Europeia e pelos Estados Unidos.
Mas grande parte do continente ainda sofre com os efeitos da colonização europeia. O exemplo mais gritante é o surto de ebola, que afeta países como Guiné, Serra Leoa, Libéria, Mali, Senegal e Nigéria.
Algumas comunidades de Serra Leoa já perderam mais de 10% da população, vítima do ebola. Essa doença representa mais do que uma tragédia humana, também existe o desastre ecológico, que contribuiu para a morte de milhares de gorilas e chipanzés, nossos parentes genéticos mais próximos, por cepas do mesmo vírus. Cientistas calculam a morte de cerca de 5000 gorilas no Congo e no Gabão entre 2002 e 2004, e de 88% da população de chipanzés no Santuário Lossi.
Ou seja, o modelo imposto pelos colonizadores limita as possibilidades de desenvolvimento do continente, contribui para a destruição de riquezas naturais, e para a degradação do ambiente e da biodiversidade local.
O surto recente do ebola é um típico exemplo da ausência de saneamento ambiental e de políticas sanitárias no continente africano, que oprimido pelo passado colonialista, pela dívida externa, e pela pressão dos organismos financeiros internacionais (FMI e Banco Mundial), da União Europeia e dos EUA, não consegue investir neste campo.
Faltam médicos, medicamentos, e mecanismos de controle sanitário, como o acompanhamento da propagação do ebola-vírus nos morcegos, que são o reservatório natural mais provável da doença, em roedores e outras espécies.
O Ocidente também tem fechado os olhos, como sempre, para as guerras civis e os conflitos militares, como o massacre de cerca de 2.000 pessoas na Nigéria, a maioria mulheres e crianças, pelo grupo extremista Boko Haram, na mesma época do atentado à revista francesa Charlie Hebdo.
Assim as grandes agências de notícias tentam isolar as vítimas do ebola nos limites da quarentena formada na Libéria, Serra Leoa, Guiné e Senegal, também não se observou nenhuma indignação em relação ao massacre da Nigéria. Nem passeatas, nem debates, muito menos o bombardeio de notícias pela mídia. Não verificamos a solidariedade dos líderes internacionais em razão deste atentado terrorista, ou de qualquer outro massacre.
Para europeus e americanos, a Nigéria é apenas um compradora de armas e fornecedora de petróleo e de outras riquezas naturais.
Conclui-se, por fim, que, mesmo sendo o berço da humanidade e da civilização ocidental, e apesar dos inegáveis avanços sociais, econômicos e democráticos nas duas últimas décadas, os problemas da África ainda continuam sendo invisíveis para a mídia, para as agências de notícias, e para as grandes potencias ocidentais.
Publicado em 19 de janeiro de 2015
Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.
https://www.alainet.org/de/node/166882?language=en
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