A deriva da classe média na Paulista e o vazio conservador
- Opinión
Quem teria algo a propor para reerguer a autoestima da sociedade brasileira e superar o atoleiro do arrocho fiscal? A direita certamente que não.
A atabalhoada virulência com que o conservadorismo foi ao pote para matar, picar e salgar o quarto mandato progressista conquistado nas urnas brasileiras, começa a revelar a fragilidade inerente ao ímpeto que tem pouco mais a propor ao país do que uma panaceia vingativa: o politicídio do PT.
O esvaziamento das manifestações é o sintoma dessa vossoroca que come o simplismo por dentro.
A frustração de quem foi ludibriado pela promessa de redenção sumária do país pode arrastar cabeças e decepar reputações conservadoras.
Há pouco mais de dois meses, Cristina Kirchner era um cadáver político na Argentina, que tem eleições presidenciais em outubro. A presidenta era acusada inclusive de tramar o assassinato de um juiz. Sem recuar, batendo de frente com a mídia conservadora e não cedendo ao mercadismo, ela virou o jogo.
Hoje Cristina tem 50% de aprovação; seu candidato Daniel Scioli, que lidera a corrida eleitoral, esteve na semana passada no Brasil para gravar o apoio de Lula à sua campanha.
Tucanos de alto coturno, como FHC, farejaram o perigo no ar e recomendam distância das ruas; outros tentam com sofreguidão ressuscitar uma bandeira que morreu na deriva do último domingo: a do impeachment.
A mídia uiva, mas há um cheiro de fracasso na operação ‘tudo ou nada’ desencadeada nos últimos meses.
O governo e o PT saberão, como Cristina, virar o jogo?
Como se sabe, na falta de votos, o conservadorismo convocou a guilhotina.
O medo e o ressentimento da classe média foram insuflados, depois, promovidos a juiz.
O glorioso jornalismo isento deixou a notícia momentaneamente de lado –como tem feito desde 2003-- para vestir o gorro ninja dos vingadores com a tocha na mão. Ou o microfone, o teclado, tanto faz no caso.
Cevada no capim gordura do preconceito e da semi-informação, educada pela emissão conservadora a dar as costas ao país real e aos percalços do desenvolvimento na desordem neoliberal, a classe média respondeu à convocação com a histeria dos programas de auditório.
A corrupção, como sempre, foi o bacalhau atirado para aguçar apetites vorazes.
Não faltaram capatazes desembaraçados no ofício de tanger o surto à seringa do antipetismo.
Na segunda volta da comitiva neste domingo, porém, a marca do ferro quente já não parecia bastante para garantir o alinhamento nos piquetes programados.
Aqui e ali surgem manifestações generalistas que afrontam os cânones diuturnamente emitidos pelos donos do berrante, a saber: a corrupção petista será sempre sistêmica; pontual, por natureza, é a conservadora.
Dissonâncias no script das delações da Lava Jato, ademais de imprevistos como a Operação Zelotes, sem mencionar o trensalão tucano, levantam a poeira da indiferenciação.
Quando o próprio higienismo exala podridão, quem garante a disciplina do tropel?
Um terceiro domingão verde amarelo reveste-se da incógnita típica das criaturas que podem escapar ao criador.
É hora de trocar o bacalhau e o jornalismo dos chacrinhas e chacretes por alguma coisa mais propositiva e rápida.
Qual? Esse é o problema.
Além de condenar a corrupção, elogiar a água encanada e a eletricidade, o que mais o conservadorismo tem a oferecer à encruzilhada do desenvolvimento brasileiro nesse momento?
O direcionamento de tudo no extermínio petista, que descarta até a reforma política, revela-se agora um chão mole, perigosamente capaz de engolir a pressa conservadora.
Sejamos francos, discursos em homenagem ‘à ordem espontânea dos mercados’, como o dos petizes do ultraliberalismo austríaco, que saltitam no alto do carro alegórico desse ‘Brasil Livre’, empolgam alguém, além dos redatores da Veja?
A léguas de ser um remanso para o PT, a verdade é que o mar tampouco se mostra amigável ao repertório conservador.
O aperto de mão entre os presidentes Raul Castro e Barack Obama na Cúpula das Américas, no último sábado, por exemplo, aleijou uma perna decisiva de seu pé de apoio no mundo.
O gesto condensa um simbolismo suficiente para estalar os ossos dessa turma.
Não importa que Washington acene a Cuba com uma mão e aponte a metralhadora para a Venezuela com a outra.
O implícito reconhecimento de que o cerco fracassou em relação à ilha de Fidel –e que ela não se dobrou no essencial-- desmoraliza a repetição da fórmula contra a Venezuela.
Não só.
A subserviência histórica da elite latino-americana aos EUA também não encontra mais amparo na pujança de um way of life que justifique seu projeto de um alinhamento carnal com o império.
O que os EUA tem a oferecer hoje, além do jogral da eficiência dos mercados desregulados, que a crise de 2008 mastigou e arrota na forma de uma indigestão sistêmica que já se arrasta por sete anos?
O que, além da ALCA recauchutada? E cujo principal objetivo é injetar uma transfusão de demanda à combalida recuperação norte-americana, incapaz deslanchar para fora com o dólar forte, e para dentro, com a anemia de uma classe média cuja renda não cresce há 15 anos em termos reais.
Sugestivo dessa minguante é a campanha protagonizada agora pela atriz Gwyneth Paltrow.
Para divulgar a luta contra a fome nos EUA – o país tem 47,5 milhões de pessoas que ganham até 2 dólares por dia – ela topou a experiência de viver uma semana com um máximo de US$ 29.
Organizada pelo Banco de Alimentos de Nova Iorque, o desafio pretende denunciar o duplo corte no vale alimentação imposto pelo Congresso conservador, em 2013, que jogou mais famílias na insegurança alimentar.
Se é assim e se a meca recua agora diante de uma Cuba que estava programada para ruir junto com os irmãos Castro, o que sobra como referência de mundo ao conservadorismo verde e amarelo da Paulista?
Cuba era o coringa no qual se batia para acertar Lula, Dilma, Morales, Chávez/ Maduro, Cristina, Rafael, Mujica e outros.
Se, como disse Raul Castro na cúpula do Panamá, um país pequeno e desprovido de recursos naturais, pode construir uma cobertura universal de educação e saúde gratuita e de alta qualidade, ademais de garantir amplo acesso ao esporte e à cultura, direito à vida e à segurança. ‘Se em que pesem as carências e dificuldades’, agregou Raul Castro, ‘continuamos a compartilhar o que temos, e mantemos 65 mil cooperantes cubanos trabalhando em 89 países, sobretudo nas áreas da medicina e da educação...’
Se com recursos tão escassos, Cuba fez tudo isso, cabe pedir licença a Raul Castro para transferir a sua pergunta aos brasileiros que desejam compartilhar um verdadeiro país: o que não seria possível construir aqui com uma frente ampla progressista capaz de negociar e ordenar o passo seguinte do desenvolvimento?
Raul foi ovacionado ao final de sua fala no encontro do Panamá.
Quem na atual encruzilhada brasileira teria algo desse gigantismo a propor à sociedade para reerguer sua autoestima e superar o atoleiro que oscila entre o arrocho fiscal e a deriva dos domingões conservadores na Paulista?
À prostração petista cabe lembrar: Cuba é pouco maior que Santa Catarina.
Seu mercado limita-se a 11,2 milhões de pessoas. As quatro letras de seu nome condensam, porém, um dicionário de experiências, de esperanças, de vitórias, de tropeços, de lições e de problemas no caminho da construção de uma sociedade mais justa e convergente.
Os picos de desigualdade no capitalismo, e tudo o que isso significa em relação às formas de viver e de produzir em nosso tempo, reiteram a pertinência dessa teimosia que incomoda o conservadorismo, como ficou provado mais uma vez nas eleições presidenciais de 2014 .
Em um dos debates mais virulentos da campanha, o candidato conservador Aécio Neves trouxe a ilha para o palanque.
O tucano acusou o governo da candidata à reeleição, Dilma Rousseff, de cometer duas heresias do ponto de vista do cerco histórico à audácia caribenha.
A primeira, o financiamento de US$ 802 milhões para a construção de um porto estratégico de um milhão de conteiners na costa cubana de Mariel, a 200 quilômetros da Flórida. Obra capaz de transformar Cuba em uma intersecção relevante no comércio entre as Américas, denunciada por Aécio como ‘cumplicidade do BNDES com o castrismo’.
A outra, a parceria na área da saúde, que trouxe mais de 11 mil médicos cubanos ao país, onde asseguram assistência a 50 milhões de pessoas. Estigmatizado como um sistema de ‘escravidão de mão de obra cubana’, o ‘Mais Médicos’ teve a oposição canina de muitos que agora defendem o projeto de terceirização e desmonte dos direitos trabalhistas no Brasil...
O reatamento diplomático entre Havana e Washington adiciona ar fresco à impressionante resistência daquilo que se imaginava mais frágil do que tem se mostrado.
É um sinal significativo. Porém é mais que um sinal.
Agrega um punhado de arguições à transição de ciclo econômico em marcha na América Latina e, portanto, no Brasil nesse momento.
A terceirização do futuro como obra do arrocho, por exemplo, é a melhor escolha?
Não se discute a necessidade de ajustes macroeconômicos em meio a uma transição difícil da economia mundial.
Mas é inescapável a atualidade da lição embutida na travessia cubana que afrontou o fatalismo economicista com as armas hoje subestimadas por muitos dentro do governo.
Por maior que tenha sido a rigidez política de que se acusa a experiência cubana – que não se sustentaria se fosse esse o seu único esteio-- o fato é que ela só não virou pó graças ao planejamento público, à organização social, à consciência política e à formação cidadã de amplas camadas de seu povo.
Não se trata de minimizar o custo humano e social elevadíssimo desses sessenta anos de resistência ao cerco imperial. Mas de enxergar na experiência extrema da vulnerabilidade, o alcance mitigador da variável política, cuja força se faz reconhecida agora no reatamento diplomático norte-americano.
O retrospecto da épica caminhada do povo de Cuba fala aos nossos dias e à deriva que nos constrange.
Ao contrário da presunção que vê no degelo diplomático o atalho da conversão capitalista tantas vezes frustrada, a resistência pregressa enseja outras esperanças.
Livre da asfixia econômica, o discernimento político e social acumulado pela sociedade cubana figura talvez como o mais experimentado laboratório de ponta da história para resgatar o elo perdido do debate latino-americano sobre a transição para um modelo de desenvolvimento mais justo, regionalmente integrado, cooperativo, democraticamente participativo e sustentável.
Se Cuba desmentir a derrocada de seus valores, dará inestimável contribuição para fixar o chão firme capaz de desenferrujar essa alavanca histórica.
Não é pouco. E pode ser muito do ponto de vista do imaginário e da agenda regional.
Cuba soçobrou, mas não sucumbiu graças à vitalidade de sua organização política e social para enfrentar restrições equivalentes às de uma guerra, que se estendeu por sessenta anos, a mais longa de que se tem notícia no mundo moderno.
Não há nisso um elogio à ilusão do paraíso caribenho.
Cuba continua a ser uma construção inconclusa, cujo futuro depende da integração latino-americana em curso.
Mas ao contrário da rendição inapelável prevista nos prognósticos conservadores, pode surpreender de novo. E frustrar seus coveiros, contribuindo para reinventar a transição rumo a uma sociedade mais justa e libertária no século XXI.
Nesse sentido, a ilha ainda tem algo de novo a dizer aos povos latino-americanos. E aos brasileiros, em especial, nesse momento particular.
Na voz de Raul Castro na Cúpula das Américas, a pequena porção de terra caribenha parece sacudir a prostração brasileira pelo ombros para dizer: desenhe um futuro maior que a avenida Paulista e convoque todos os brasileiros a construí-lo.
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