Da crise à Frente Brasil
A defesa do mandato legal e legítimo da Dilma é prioridade que se impõe à luta dos liberais e progressistas de um modo geral, e, de forma muito particular, à ação das forças de esquerda e suas organizações. Defender a Constituição, afinal, é o dever de todos os democratas.
- Opinión
A frente que será lançada em 5 de setembro defende a democracia, os direitos dos trabalhadores e o desenvolvimento com distribuição de renda.
A defesa do mandato legal e legítimo da presidente Dilma Rousseff é prioridade que se impõe à luta dos liberais e progressistas de um modo geral, e, de forma muito particular, à ação das forças de esquerda e suas organizações. Defender a Constituição, afinal, é o dever de todos os democratas.
Mas essa defesa não encerra a história toda, nem os desafios todos, pois a tentativa de depor a presidente Dilma, via impeachment ou isso ou aquilo não é o objetivo final da onda conservadora, mas, tão-só o meio de que se vale a direita brasileira em seu projeto de reconquista do poder, a qualquer custo, para nele, desta feita, instalar uma república conservadora, ainda mais intolerante do que aquela que foi a base e a obra do golpe militar de 1964.
Não se trata, apenas, de golpear uma mandatária legitimada pela voz soberana dos votos; trata-se, mais, de abrir caminho para a instauração de um regime autoritário de raízes protofascistas, antecipado nas palavras de ordem que ecoam nas ruas e nos meios de comunicação de massa. A direita mira um horizonte para além de 2016 e 2018. Iludem-se os liberais de hoje como se iludiram os que em 1964 diziam que estávamos apenas em face de ‘mais uma quartelada’, que logo tudo voltaria ao melhor dos mundos.
A direita, no Brasil e no mundo, não guarda qualquer apreço seja pela democracia, seja pela ética, seja pela moralidade. Esses valores não passam de meio subordinado ao projeto final, perseguido e muitas vezes alcançado a qualquer custo, o que compreende mesmo, em nome da moralidade de fancaria, associar-se a figuras públicas e reputação duvidosa – como o deputado Eduardo Cunha (e o inefável ‘Paulinho da Força’) – para derrubar uma presidente consabidamente honrada.
Mas, repitamos, a questão não se encerra no mandato da presidente.
O projeto da direita brasileira não é mesmo, tão-só, a desmoralização política da esquerda com vistas a eventual retomada do poder em 2018; seu objetivo de médio e longo prazos mira uma sociedade autoritária.
O moloch reacionário, em sua fome insaciável de poder, pretende consumir as conquistas sociais, políticas e econômicas das últimas décadas. É um projeto que opõe classe contra classe; é o almejado império da Casa Grande em face de uma senzala que, no que cresce em reivindicações, precisa ser contida. O capitalismo reage assim, com violência, em todos os momentos de crise.
Essa é, por exemplo, a história do século XX, com suas crises, suas convulsões, suas guerras e suas ditaduras. Essa é a história do autoritarismo, da xenofobia, dos fundamentalismos e, em alguns momentos, a história do antissemitismo. Quando a crise econômica ameaça a acumulação capitalista, a alternativa é conter o andar de baixo para preservar os interesses do andar de cima. E eis a que serve o Estado autoritário.
Os liberais de 1954 acreditaram no cantochão moralista do udeno-lacerdismo e se associaram aos golpistas que levaram Getúlio Vargas ao suicídio. Só muito mais tarde, na autocrítica de Afonso Arinos, é que se deram conta de que simplesmente haviam servido de instrumento de uma maquinação contra os interesses nacionais e populares.
A campanha contra o ‘mar de lama’, de resto inexistente, tinha como alvo verdadeiro a política social de Vargas e as empresas estatais por ele criadas para assegurar o desenvolvimento econômico nacional. Deixaram-se iludir de novo os liberais em 1964 supondo que pedindo a queda de Jango estavam defendendo a Constituição, e assim alimentaram com seu decisivo apoio uma cujo ponto de partida foi exatamente a destruição da ordem constitucional.
Foram anos de ditadura, com seu inventário de torturados, mortos e desaparecidos, 21 anos de exílio da política e de supressão das liberdades, é preciso repetir mil vezes chamar a atenção dos surdos e cegos e desmemoriados de hoje.
Os que hoje juntam suas vozes ingênuas aos que arquitetam o golpe, estão, na verdade, associando-se a uma aventura reacionária de ranço fascista, cujos desdobramentos ainda não podem ser mensurados. Assim como os militares golpistas, derrubando Jango, assumiram o governo civil em vez de retornarem à caserna, a onda reacionária de hoje – que em meio à punição de corruptos pede a volta dos militares, aplaude Eduardo Cunha e os Bolsonaros da vida, pede a eliminação física de adversários e agride seus oponentes – não saciará a fome de poder nem com a deposição de Dilma, nem com aniquilamento político e eleitoral de Lula, nem com a liquidação do PT e, com ela, a liquidação dos partidos e das organizações de esquerda. Iluda-se a extrema-esquerda se quiser.
O primeiro quartel do terceiro milênio lembra os anos 20/30 do século passado, quando, em nome disso e daquilo foram derrubadas as democracias, abrindo caminho para as ditaduras, o fascismo e o nazismo. Assim na Europa (por exemplo: Alemanha, Itália, Espanha, Portugal), assim na Ásia ( Japão), assim no Brasil com o Estado Novo. Onda similar se reproduz globalmente com o avanço da direita no Velho Continente, a ascensão do Tea Party nos USA e as convulsões, muitas estimuladas de fora para dentro, que ameaçam os governos progressistas na América Latina e particularmente na América do Sul.
Crise do capitalismo, crise das democracias. Em todo o mundo e em todos os tempos a crise econômica se divorcia da ascensão das massas.
O Brasil não é uma ilha.
Quando nossos liberais e democratas dar-se-ão conta desse histórico papel de marionetas a serviço de frações perversas e corrompidas da classe dominante, subordinadas a interesses externos?
A propósito, a direita não tem apego a princípios morais ou democráticos, simplesmente deles lança mão como aríete de seus objetivos. E, alcançados esses e realizados seus interesses, daqueles princípios se descarta. A legalidade democrática interessa-lhe quando na oposição, tanto quanto a pregação moralista, pois, no poder, logo se desfaz desses valores como penduricalhos incômodos, e sem qualquer cerimônia se vale da opressão, do autoritarismo, do estado policial para realizar seus projetos.
De igual modo não preserva princípios éticos na condução da coisa pública, pois a corrupção é sua essência. Haja vista o que ocorreu com o modelo social democrata europeu, que vigeu no pós Segunda Guerra. Concebido para enfrentar o fantasma do comunismo, tão logo a União Soviética foi derrotada, passou a ser sistematicamente demolido.
A organização popular é, dessa forma, o ponto de partida não apenas para a defesa do mandato presidencial, mas, igualmente, para assegurar a preservação de seus compromissos populares e fazer face à onda conservadora. Em síntese: é preciso preservar o mandato da presidente em sua plenitude, isto é, livre para governar consoante os compromissos assumidos com as forças que a elegeram, e é preciso, ainda, enfrentar e barrar a onda fascistóide.
Tudo isso reclama organização popular. Pois a ofensiva conservadora constrói diversos cenários, seja a ostensiva e grosseira tentativa de sabotar para finalmente derrubar o governo – nas ruas, no Congresso, nos Tribunais partidarizados ou mediante o discurso monopolizado dos meios de comunicação de massa –, seja impondo aos eleitos o programa dos derrotados nas eleições presidenciais de 2014, promovendo um ajuste que gera desemprego e recessão, cuja execução já traz como consequência afastar o governo da sua base popular, única que lhe pode oferecer sustentação.
O cenário de hoje nos antecipa o fim de promissor ciclo de avanço da esquerda brasileira, prenunciando para os anos próximos um ciclo direitista em termos que, há pouco, pareciam inimagináveis. Isso, a menos que as forças populares se deem conta do perigo que correm presentemente as conquistas sociais das últimas décadas, e proponham à sociedade uma ampla aliança com o fito de barrar o retrocesso.
O modo dessa resistência é a política de Frente, de frentes democráticas e progressistas unificando a reflexão e a luta, a resistência dos mais diversos setores e agrupamentos sociais e políticos. É este o pressuposto da iniciativa que reúne militantes, políticos, partidos, intelectuais, representações do movimento social em geral e dos movimentos sindicais urbanos e rurais com destaque para o MST, a CUT e a CTB, a UNE, pastorais sociais presentemente reunidos em torno do projeto da Frente Brasil. Trata-se de frente politicamente ampla, unificada na luta objetiva pela democracia, pela preservação e avanço dos direitos dos trabalhadores, pela defesa da soberania nacional e o desenvolvimento com distribuição de renda.
Na luta pelas reformas estruturais (e são apenas exemplares a reforma política, a reforma urbana, a reforma agrária, a reforma tributaria/fiscal, a reforma da educação) e pela reforma e democratização do Estado, bem como a defesa e aprofundamento dos processos de integração latino-americana em curso como o Mercosul, a Unasul, o Celac. Por fim, a defesa da produção e do trabalho sobre o rentismo. Uma frente ampla e forte o suficiente para alteraratual correlação de forças, que inibe e coarta o governo. Uma correlação de forças que, finalmente, possa democratizar os meios de comunicação de massa.
Essa Frente Brasil-Popular, que será lançada no próximo dia 5 de setembro em Belo Horizonte, não é partidária, mas não prescinde dos partidos nem os substitui; é política mas não se unifica em torno de calendários ou projetos eleitorais. Gestada a partir de um núcleo popular de esquerda, ela se lança à ampliação, aberta a todos os democratas. É popular porque enraizada no movimento social. É estratégica, posto que não se mobiliza, apenas, em torno da defesa do mandato da Presidente Dilma. Defende-o, e de igual modo defende o processo democrático, mas defende a preservação, no governo, das teses do campo popular, e se propõe, ao lado de todas as forças progressistas, a enfrentar o rolo compressor da direita, no governo Dilma e para além dele.
É uma Frente nacional que se reproduzirá em todo o País, nos Estados, nos municípios, procurando tecer a mais extensa rede de atuação.
Essa Frente, porém, não conterá todas as formas de luta, nem anulará outras iniciativas. Ela não substitui as frentes de partidos, nem eventual frente eleitoral progressista organizada para fazer face à frente conservadora, nem outras formas de frente e de lutas que a realidade objetiva exigir. Ela, enfim, se completará em uma série de outras iniciativas, e uma delas é, com os mesmos objetivos, uma Frente Parlamentar, reunindo todas aquelas forças democráticas comprometidas com a questão social e o enfrentamento da onda conservadora.
- Roberto Amaral, www.ramaral.org
Del mismo autor
- “Presidencialismo mitigado”: a nova face de um velho golpe 01/04/2022
- “O tempo nos dirá o que significará para a Europa e o mundo o rearmamento alemão” 28/03/2022
- O doloroso parto de uma nova era 21/03/2022
- A guerra clássica e o fim da hegemonia anglo-saxã 14/03/2022
- A Ucrânia e seus algozes 04/03/2022
- Lições de um patriotia 01/02/2022
- Lula e o desafio de conciliar a mudança reclamada pelas massas com a união nacional 24/01/2022
- Quem fará o discurso da esquerda? 14/01/2022
- Brasil: a independência por fazer 07/01/2022
- Sobre as credenciais democráticas da velha imprensa 12/12/2021