O enigma Scioli
Ele foi o escolhido pela própria Cristina Kirchner para defender o atual projeto político argentino nas eleições presidenciais
- Opinión
Daniel Scioli, o candidato favorito nas presidenciais de 25 de outubro. (foto: Governo da Província de Buenos Aires)
Ele foi o escolhido pela própria Cristina Kirchner para defender o atual projeto político argentino nas eleições presidenciais, e agora, a duas semanas de um pleito onde ele é favorito, podendo ganhar inclusive no primeiro turno, o kirchnerismo debate se ele é mesmo o representante ideal desse projeto.
Por trás de Daniel Scioli, governador da Província de Buenos Aires e líder das pesquisas de intenção de voto para a eleição presidencial do dia 25 de outubro, há mais de uma incógnita, mas a mais importante para o eleitor kirchnerista – um grupo social coeso e capaz de eleger o próximo presidente já no primeiro turno – é sua fidelidade aos programas sociais e às bandeiras políticas do atual governo. Claro que a própria dúvida do eleitorado já é em si uma prova de que essa fidelidade ao projeto da Frente para a Vitória (FpV, movimento liderado por Cristina) está em risco, mas vamos vale a pena estudar melhor as especulações em torno ao candidato.
A campanha publicitária de Scioli na televisão ajuda a reforçar essas dúvidas, mostrando mais preocupação estética que conteúdo político – um padrão que a esquerda latina vem mostrando nos últimos anos e que, em alguns países, vem sendo funcional ao reposicionamento da direita. Nas vezes em que falou sobre como seria seu novo governo, Scioli se pareceu um pouco com Dilma, alabando o projeto político do qual é herdeiro, mas mostrando aos poucos como será seu novo estilo, e fazendo alusões a necessidade de ajustes na economia, nos primeiros meses.
Durante as primárias de agosto, os candidatos mais à esquerda usaram o Brasil como exemplo para acusar Scioli de esconder um pacote de medidas econômicas parecidas às impulsadas por Dilma este ano, e que seus dois encontros com Lula este ano eram um indício dessa intenção. O candidato fingir que não escutou, e apresentou o ex-presidente brasileiro como um exemplo de gestão de sucesso que ele pretende emular na Argentina.
Claro que Lula contém outro elemento que ele precisava para sua campanha: o elemento popular. Scioli é um ex-piloto de motonáutica, uma origem social que dificulta uma maior identificação com o eleitorado kirchnerista. Sua ligação com as camadas sociais mais baixas sempre foi o projeto kirchnerista e a necessidade de colar a sua à de Lula sugere uma preocupação com a falta de um apoio mais entusiasmado por parte de Cristina Kirchner à sua campanha, que ainda não aconteceu. Não que a atual presidenta não esteja remando a seu favor – tanto está que foi dela a ideia de que ele fosse candidato único da FpV nas primárias –, mas dá a sensação de que ela tenta salvar uma distância segura para poder se estabelecer como opositora caso um governo dele contrarie as expectativas do eleitorado. Essa distância explica porque Cristina possui cerca 51% de aprovação, enquanto o candidato tem apenas 39% das intenções de voto. Scioli se enfrenta àquele estranho favoritismo que Dilma carregou no primeiro turno do ano passado: pode vencer já no primeiro turno – uma possibilidade que está dentro da margem de erro atualmente – mas terá grandes problemas caso tenha que enfrentar um desempate, devido à união entre os principais concorrentes.
Vale lembrar que são dois os cenários que determinariam uma vitória no primeiro turno: uma votação de mais de 45% dos votos ou de mais de 40% com diferença de mais de 10% sobre o segundo colocado. Esse segundo cenário é possível, já que o segundo colocado nas pesquisas o conservador Mauricio Macri – ex-prefeito de Buenos Aires e ex-presidente do Boca Juniors – tem cerca de 31%, e a mesma margem de erro que poderia levar Scioli a ter 41%, também considera a possibilidade dele ter 29%, uma diferença que definiria o pleito sem necessidade de desempate.
Scioli e a imprensa
Outra dúvida relacionada a Daniel Scioli diz respeito à sua relação com a oposição, que tende a ter menos dura que a de Cristina Kirchner, especialmente a relação com a oposição midiática.
Desde sua chegada à Casa Rosada, Cristina escolheu o Grupo Clarín como principal força opositora ao seu governo, e não se equivocou. A estratégia permitiu a ela jogar uma sombra de dúvida sobre as chicanas comunicacionais da imprensa contra o seu governo e contra sua família.
Scioli não terá uma relação conflitiva com a imprensa e talvez seja totalmente o contrário. O Clarín tenta manter com ele a mesma distância segura de Cristina, pelo lado opositor. Critica sua campanha, mas não da forma raivosa que costuma usar com a atual presidenta. Um cálculo que talvez considere a possibilidade de se aproximar do novo governo mesmo no caso do evidente apoio dado à candidatura de Macri não ser suficiente para uma virada do candidato conservador.
Já seria uma grande vitória para o Clarín se um eventual governo de Scioli colocar um freio na Ley de Medios, que ameaça a sua enorme hegemonia no setor. Nesse sentido, o grupo jornalístico já tem meia vitória assegurada. A relação entre ambas as partes quando Scioli foi governador da Província de Buenos Aires nunca apresentou grandes rusgas, apesar da postura opositora da empresa.
O estilo moderado de Scioli não permite a ele adotar contra a imprensa uma posição tão conflitiva como a de Cristina. Claro que o interesse do Clarín é derrubar a lei, mas se não consegue isso, se contentará com que ela tenha menos prioridade por parte do governo, algo que é muito provável.
Ainda assim, Macri continua sendo a melhor alternativa para a empresa, já que garantiria não só o fim definitivo da Ley de Medios como a recuperação do monopólio das transmissões dos jogos do Campeonato Argentino, que Cristina nacionalizou em 2009 – o projeto Fútbol Para Todos permitiu que todos os jogos da primeira e da segunda divisão do futebol argentino passem em canais abertos e estatais, e não somente na tevê a cabo, como era durante o monopólio da Cablevisión, uma empresa ligada ao Grupo Clarín.
Scioli e a América Latina
O perfil moderado de Daniel Scioli também alimenta uma dúvida a respeito de sua política internacional. Sua aproximação com Lula não significa, por exemplo, que ele seja necessariamente um apoio para Dilma – supondo que a presidenta brasileira conseguirá evadir os movimentos da oposição em seu país e se manter no cargo até a posse do novo presidente da Argentina.
Contudo sua identificação natural na região será com os governos de centro-esquerda que estão muito mais ao centro que à esquerda, e o governo de Dilma Rousseff é claramente um deles, assim como o da chilena Michelle Bachelet, o do uruguaio Tabaré Vásquez e o do peruano Ollanta Humala. Um possível governo de Scioli significa, em comparação com o governo de Cristina, uma Argentina mais distante da Venezuela e do Equador. Não tanto com a Bolívia, devido à dependência do gás enviado pelo país do altiplano.
Por outro lado, caso o Brasil ou algum outro país da região sofra com ataques institucionais à democracia, Scioli não será um obstáculo, não terá a mesma reação enérgica que Cristina teve contra o golpe no Paraguai em 2012 e em Honduras, em 2009. Pelo contrário, em casos assim, a empatia de classe social pode levá-lo, por exemplo, a aceitar um eventual novo governo no Brasil, depois de um pequeno período de congelamento das relações, o suficiente para não permitir que sua figura esteja ligada a esse possível golpe de Estado.
A primeira grande dúvida a respeito de Daniel Scioli será respondida no dia 25 de outubro, quando ele deverá mostrar se pode ganhar as eleições no primeiro turno, ou se terá que ir a um segundo turno, em 22 de novembro. Claro que, se sua campanha entregar mensagens mais claras sobre o futuro, os eleitores o ajudarão mais facilmente a decidir essa questão.
13 de outubro de 2015
http://redelatinamerica.cartacapital.com.br/o-enigma-scioli/
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