O triplo desafio de comunicar para a integração

06/07/2016
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 513, 514: La comunicación en disputa 02/06/2016

Para além de dificuldades conjunturais, a integração regional de caráter soberano é um projeto permanente que — como qualquer outro — sofre altos e baixos durante seu processo de execução. A integração representa uma afronta à lógica da subordinação. Indica não apenas um caminho de relativa independência e paridade em relação aos centros de poder estabelecido, como também proclama a possibilidade de uma convergência intencional dos povos sem a mediação de modelos impostos. Aponta para a indiscutível direção da história humana que implica a superação de condições prévias de dor e sofrimento, de opressão e violência. Carrega, portanto, na essência — e em todo intervalo tático — um eminente conflito com as pretensões de domínio hegemônico. O signo integrador solidário encarna e encara, ainda, uma luta inequívoca contra a imobilidade histórica e social.

 

A imagem de uma identidade comum que anule fronteiras fictícias cultiva sonhos de unidade, promove relações de desenvolvimento e abre aos povos a possibilidade de forjar um destino compartilhado no sentido fraterno.

 

A encruzilhada do momento geopolítico mostra a reação estadunidense contra o avanço alcançado nos últimos anos pelo multilateralismo, em favor da recomposição de um frustrado esquema unipolar. Esta ofensiva é propugnada por setores hiperconcentrados (bancos, corporações, complexo militar industrial) que têm sua base jurídica, militar, política e econômica no país norte-americano e manipulam o sistema político daquele país.

 

O objetivo de tal reação é claro: destruir todo esforço de integração externo a sua órbita de interesses e compensar as novas alianças mundiais estabelecidas pelos BRICS, as relações Sul-Sul. Assim se pretende deter a iminente queda do sistema internacional estabelecido na segunda metade do século passado, cujas instituições e moeda são controladas pelos Estados Unidos da América.

 

De um ponto de vista histórico, desponta também de maneira inegável um extenso, indignado e irreverente clamor de superação sistêmica do velho por algo novo, multiforme em sua reivindicação e casualmente também em seus objetivos. Tal rebelião é mundializada, produz-se em contextos culturais muito distintos e seu principal portador são as novas gerações.

 

Diante desse cenário, a comunicação não foi, não é e nem pode ser neutra. E mais: grande parte do que chamamos “comunicação” desapareceu, sendo engolida pela propaganda. Essa modalidade de difusão massiva é a que mantém vivo um sistema de acumulação de capital já amplamente obsoleto em termos de economia real.

 

Já desde a aparição do livro de E. Bernays, Crystallizing Public Opinion (1923), nos EUA, as técnicas de mercado substituiriam significativamente qualquer outra mensagem na esfera pública. Os estúdios cinematográficos de Hollywood trariam a colonização modelada, enquanto na área política os sucessivos estamentos de guerra psicológica do Departamento de Estado norte-americano e a CIA cooptariam a mídia e os jornalistas[1] para disseminar rumores e ideologia. Sua missão foi (e continua sendo) a de potencializar a imagem dos Estados Unidos como baluarte do mundo livre e como modelo de vida para demais povos do mundo.

 

A longa noite do pós-guerra, longe de haver desaparecido, dura até hoje. Diretamente ou por meio do servilismo das empresas locais, os conteúdos difundidos por seus grandes tentáculos são manipulados para fazer o público acreditar que o capitalismo é a única realidade possível e desejável.

 

A aliança objetiva de poder local e poder externo responde ao interesse de deter qualquer impulso democratizante, revolucionário ou redistributivo que puder ameaçar ou destruir o monopólio dos recursos e meios de comunicação.

 

Esta articulação econômico-midiática que impulsionou a globalização mercantil, a debilidade estatal e a corrosão do público se opõe de maneira aparentemente contraditória a toda tentativa das parcelas administrativas pós-coloniais algo irreais chamadas “países” darem passagem a integrações solidárias, cuja autonomia e força colocariam em suspeita a injustiça estrutural da real partilha sistêmica: o poder financeiro internacional nas mãos de 1% e o resto dos habitantes do planeta.

 

Contrainsurreição midiática

 

O mecanismo de desinformação dos grupos midiáticos monopolistas é colossal em suas dimensões, desintegrador em suas pretensões e manipulador em seus procedimentos.

 

Desta forma, por sua própria lógica expansiva, não pretende apenas asfixiar qualquer outra expressão ou opinião no espaço público, mas também, por sua inerente lógica de dominação, aponta à ocupação de todo espaço simbólico mediante operações de contrainsurreição semiótica.

 

É assim que a cruel opressão e agressão se disfarçam de cruzadas pela “liberdade”. É assim que a sacralidade da liberdade em tão supremo propósito da espécie é profanada e convertida em “liberdade” de mercado, de comércio, de imprensa, derivando nessa desalmada e falsa liberdade individualista cujo único destino são o desprezo pelo outro, o temor e a absoluta solidão. Pior ainda, esse desatino linguístico, moral e conceitual exige para sua instalação precisamente o contrário: a perda de toda liberdade emanada da igualdade de oportunidades, a real democracia e a diversidade de expressões. Desta maneira, a liberdade de todos fica subordinada aos insensíveis desígnios de poucos.

 

É assim que a politização social é associada a um obstáculo de tempos idos, assim é como o (aparente) vazio de significados inunda a superfície mediada, numa tentativa de silenciar toda crítica e esforço mobilizador.

 

É assim que os paladinos da guerra, os instigadores de ditaduras, os que operam nas sombras, elevam acusações denunciando toda personalidade que emerge por meio do genuíno clamor popular para defender seus direitos. Esta distorção chegou a criar inclusive nos progressismos um sentido culposo da formal (ou formol) democracia que o antipovo aproveita para desenvolver. Definitivamente, a real dialética de valores que se quer obscurecer é a da acumulação privada em oposição ao bem-estar comum.

 

A contrainsurreição midiática do sistema atua com os antepredicativos[2], quer dizer, com elementos de  pré-julgamento  (preconceitos)  e não com racionalidades argumentais. É o espaço dos relatos, de um onirismo macabro nas intenções, mas atraente nas imagens. Tal astúcia quer se conectar com a dimensão ativa do receptor, cuja memória está forjada, em nossa região, por muitos elementos de submissão ao poder forâneo e à cultura eurocêntrica.

 

A riqueza da diversidade

 

Compreender isso é essencial para avançar na integração da América Latina e Caribe. Fomos formados em cenários mentais de autodegradação. A conquista impôs grande parte de suas crenças, pretendendo sepultar, tanto em termos físicos como simbólicos, toda construção cultural precedente. A exploração colonial, a orientação da fundação independentista agora bicentenária, sua consolidação europeísta e plutocrática, a subsequente imigração massiva europeia junto às leis fascistas de proscrição cultural são fatores que impuseram a instalação de um pensamento colonizado. Este impede de apreciar suficientemente a mestiçagem cultural ou majoritária que nos caracteriza, dificultando a irmanação regional e elevando o prevalecimento do que é de fora. Assim, é comum ver esse traço autodestrutivo num importante contingente de nossos povos, que impele a querer se parecer “ao outro” para não ser visto como um “outro”. Deste modo, a liberação produzida pela integração regional deve se dirigir não somente a reparar a destruição objetiva como também a reconstruir a demolição subjetiva.

 

Não se trata de forjar identidades excludentes, de chovinismos regionais simplistas ou de defender um arcaísmo estático e sem futuro. Trata-se de ponderar sobre a riqueza do diverso, de recuperar a beleza do multiforme, de reunir em sentido criativo o melhor dos impulsos culturais subjugados, para daí, em pé de igualdade, propor horizontes de colaboração e reciprocidade às demais regiões.

 

Este panorama coloca a comunicação para uma integração emancipadora diante de um triplo desafio:

 

Recuperar o sentido da comunicação, compensando o aparato midiático de propaganda mercantilista mediante o poder da convergência do diverso, a articulação criativa dos milhares de meios de comunicação populares, comunitários, universitários ou cooperativos, tão legítimos quanto aptos a esta tarefa.

 

É imprescindível fixar agendas informativas e matrizes de análise próprias diante da trama imposta pelos conglomerados corporativos. Criar e compartilhar conteúdo multimídia de qualidade que sirva para tecer laços de integração entre os povos.

 

Informar sobre o cenário de conflito subjetivo entre comunicação liberadora e propaganda retrógrada. Ao mesmo tempo, ajudar a refletir sobre a dimensão decisiva de superar esquemas de autodegradação e dependência cultural, permitindo-nos a possibilidade de sonhar com horizontes de ação e desenvolvimento não condicionados.

 

Nesse sentido, o trabalho do Foro de Comunicación para la Integración de Nuestra América (FCINA) — articulação de mídia, redes de comunicação e movimentos sociais da América Latina e Caribe comprometidos com o avanço da integração dos povos da região — representa, em relação colaborativa com outras iniciativas similares, a sinalização adequada.

(Tradução SENGE-RJ)

 

- Javier Tolcachier é pesquisador do Centro Mundial de Estudios Humanistas e colunista na agência internacional de notícias Pressenza.

 

Artigo publicado na edição de junho 2016 da ediçao em portugês da revista América Latina en Movimiento: “La comunicación en disputa” http://www.alainet.org/pt/revistas/513-514 (ALAI - SENGE-RJ)

 

[1] Ver Operación Mockingbird ou a nota de C. Bernstein http://carlbernstein.com/magazine_cia_and_media.php

[2] Antepredicativo: na fenomenologia de Husserl, o que é dado à consciência antes de emitir julgamentos.

https://www.alainet.org/de/node/178628
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