A comunicação e o paradigma do Viver Bem/Bom Viver

18/07/2016
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 515: ¿Qué cooperación para qué desarrollo? 15/07/2016

Um paradigma comunicacional

 

O Viver Bem/Bom Viver é um paradigma comunicacional por seu caráter relacional de sociedades, de tempos, de espaços, de culturas, e do homem com a natureza. É a cosmovisão da “cosmoconvivência”, que coloca em relação (comunicação) integral e interdependente quatro outras visões do mundo: a cosmocêntrica (o centro é o cosmos), biocêntrica (o centro é a vida), etnocêntrica (o centro é o ser humano) e ecocêntrica (o centro é a natureza).

 

O caráter comunicacional do Viver Bem/Bom Viver se reflete também no caráter e na natureza dos princípios que o sustentam. Assim, o princípio da harmonia coloca os seres humanos em relação consigo mesmos, com outros seres humanos em sociedade e, de forma individual e coletiva, com o entorno natural e cósmico. Do mesmo modo, a complementaridade provoca encontros entre diversos-diferentes e a reciprocidade dinamiza a capacidade de corresponder proporcionalmente às solidariedades.

 

A busca do equilíbrio provoca interações para a superação das desigualdades e exclusões com práticas de justiça, relação fraterna, e o reconhecimento afetivo, solidário e amistoso, priorizando os acordos, para o qual outro princípio, o da integridade, ativa valores, responsabilidades, obrigatoriedades e compromissos vinculantes entre seres humanos e destes com a Pachamama (Mãe Terra/Cosmos).

 

Outro princípio no qual se sustenta o Viver Bem/ Bom Viver é o da interculturalidade, entendendo que transpõe o mero (re)conhecimento dos diversos para promover interações que superem as assimetrias sociais, econômicas e de poder sob condições de respeito em coexistências antagônicas e complementares. Este sentido comunicacional se aprofunda com o devir histórico, princípio que articula passado, presente e futuro.

 

Uma comunicologia do sul

 

O Viver Bem/Bom Viver tem o seu momento constitutivo nos saberes, práticas e culturas enraizadas nos povos do Abya Yala e suas fecundas experiências de vida comunitária com as quais sustentam resistências a histórias centenárias de dominação. Junto com eles, as lutas antissistêmicas de operários, jovens, povoadores urbanos, mulheres, defensores dos direitos humanos e outros, assim como também políticas estatais centralizadas na justiciabilidade dos direitos coletivos e da natureza, são as sementes de construção de uma vida onde se trabalha para transformar o sistema capitalista, desestruturar os traços do (neo)colonialismo, questionar o patriarcado, reverter as práticas depredadoras do meio ambiente, combater a corrupção, e superar o desenvolvimento linear confundido com progresso.

 

Porém, se o Viver Bem/Bom Viver é uma resposta civilizatória à desumanização capitalista-( neo)colonial, a Comunicação para o Viver Bem/Bom Viver é a resposta à funcionalização dos processos de comunicação a esses sistemas, já que não é possível uma nova era com sistemas sequestrados por um sentido empresarial -utilitário da liberdade de expressão, ou com meios que ofuscam as identidades múltiplas, exaltam o individualismo, fomentam o culto ao medo, e banalizam a vida encobrindo mediaticamente golpes suaves e duros à democracia.

 

A Comunicação para o Viver Bem/Bom Viver é então ao mesmo tempo o caminho e a utopia. Faz-se no próprio ventre do capitalismo que pretende superar, às vezes com arrastões e outras com rompimentos, a partir dos tecidos de uma cotidianidade material e simbólica trabalhada em relações colaborativas, solidárias, inclusivas e suficientes para uma vida saudável, sem excessos, sem carências, sem apuros nem angústias.

 

Falar como pessoas

 

Para construir a sociedade do Viver Bem/Bom Viver precisamos de uma comunicação que construa a cultura da convivência. É necessário fortalecer a comunicação popular que empreende batalhas pelos significados de um mundo justo, inclusivo, promovendo as expressões dos povos que rompem seus silêncios, que se enxergam a partir de próprias identidades, e irrompem com sua palavra interpeladora, impugnadora, contra-hegemônica e que expressa a construção de uma nova sociedade. Precisamos do aruskipasipxañanakasakipunirakispawa aymara (necessariamente devemos sempre nos comunicar uns aos outros), por seu sentido inclusivo/dialogal (nos comunicar uns a outros) no âmbito dos intercâmbios de discurso e pelo seu sentido vinculante (a obrigação de nos comunicarmos) na prática social, para chegar a entendimentos, compromissos e decisões.

 

Segundo esta perspectiva, a Comunicação para o Viver Bem/Bom Viver é “um processo de construção, de/construção e re/construção de sentidos sociais, culturais, políticos e espirituais de convivência intercultural e comunitária com reciprocidade, complementariedades e solidariedade; no marco de uma relação harmônica pessoal, social, com a natureza e o cosmos; para uma vida boa em plenitude que permita a superação do viver melhor competitivo, assimétrico, excludente e individualizante…”1. Os caminhos para a realização desta caracterização são encontrados na recuperação que faz Silvia Rivera do jaqin parlaña (falar como pessoas), que consiste em escutar para falar; saber o que se fala; e referendar as palavras com os atos2. Elementos aos quais, baseandose no sentido do jaqi aru (palavra da gente), David Choquehuanca soma o saber sonhar3. Escutar para falar ou saber escutar equivale a “escutar-nos com todos os sentidos”, a nós mesmos, revalorizando o silêncio como um momento de profundo sentido comunicativo; em sociedade, partindo das expressões múltiplas dos outros comunicacionais em seus contextos e palavras; e também escutar a Mãe Terra, descentralizando os olhares para óticas que mostram como fluem de forma combinada as vozes do ambiente, os sons da natureza e a filosofia dos povos cuja existência se rege sob o princípio da vida.

 

O saber o que se fala ou saber compartilhar implica dar um sentido educacional ao processo comunicativo, pois não serão processos de divulgação, publicidade ou transmissão de conhecimentos que irão legitimar o Viver Bem/Bom Viver. Serão práticas dialogais argumentadas o que permitirá a sistematização das experiências assim como a produção de novos conhecimentos, para a sua apropriação crítica nas reivindicações sociais e nas políticas públicas.

 

Referendar as palavras com os atos ou saber viver em harmonia e complementariedade recria pensamentos e práticas onde a reciprocidade se reconhece como forma de vida, a comunidade como forma de organização, a convivência com a natureza e o cosmos como identidade, a igualdade entre homes e mulheres como cotidianidade, a equidade como dignidade e a vida plena como destino. Para isso os Estados promovem políticas inclusivas; a cidadania pratica formas de vida comunitária; e a comunicação dinamiza espaços onde os diversos intercambiam histórias, testemunhos e projetos que se complementam em sociedades da solidariedade.

 

O saber sonhar com foco no transcendente além do aparente é trabalhar uma ecologia integral econômica, ambiental, social e cultural4, com medidas possíveis que permitam que os bens comuns universais como a água, a biodiversidade ou o ar sejam direitos globais aos quais todos e todas possamos ter acesso, do mesmo modo que ao gozo de outros direitos como a educação, a alimentação, a saúde, a habitação e a comunicação.

 

Comunicação da convivência

 

A Comunicação para o Viver Bem/Bom Viver por suas características inclusivas das sociedades e culturas é participativa; por sua contribuição para a harmonização das sociedades com a natureza e o cosmos é educativa; e por sua orientação política é popular. A sua concepção metodológica articula acesso - diálogo - participação5 - convivência, transcendendo os intercâmbios discursivos para abarcar as práticas sociais; e a sua lógica metodológica — tetralética — relaciona quatro momentos na construção de sentidos: sentir/ pensar - decidir/atuar - voltar/conviver - celebrar/ esperançar, seguindo uma sequência circular e não linear, integral e não fragmentada, e de complementariedades mais que de oposições. O sentir/pensar se origina na unidade indivisível dos sentipensamentos6 que expressam as recuapropriações e recriações da realidade histórica desde nossos saberes e formas de sentir, desde nossas realidades reais e imaginadas; em resumo, desde nossas identidades, com enunciações da palavra que interage provocando questionamentos à (des)ordem estabelecida e tecendo propostas a partir de experiências colaborativas, pessoais e coletivas. O decidir/atuar explica a realidade em suas causas estruturais e em seus contextos, conseguindo a capacidade de criar, aprofundar, projetar e ampliar criticamente as experiências do Viver Bem/Bom Viver em espaços locais, regionais, nacionais, planetários, cidadãos e estatais.

 

O voltar/conviver é iniciado nos valores pessoais, para com eles avançar em direção a complementariedades com outros, alimentando-se mutuamente e de forma permanente as vantagens da convivência comunitária, com conhecimento de causa que cada sociedade escreve as suas histórias com as suas letras, na sua língua, com as suas representações, desde as suas vivências e os seus imaginários, dando uma nova semântica e territorialidade aos sentidos. O celebrar/esperançar busca generalizar as práticas do Viver Bem/Bom Viver, transformando a realidade com mística e compromisso.

 

Neste momento ganha sentido o valor pedagógico da pergunta sobre o próprio, a memória acumulada, a identidade e, principalmente sobre o futuro, para conhecê-lo e construí-lo com esperança, celebrando as acumulações históricas da vida em convivência.

 

Tudo que foi mencionado nos mostra que a Comunicação para o Viver Bem/Bom Viver é um direito que restaura a utopia por uma Nova Ordem Mundial da Informação e a Comunicação com Políticas Plurinacionais de Comunicação para gerar processos interculturais de democratização da palavra em comunidades de comunicação.

 

- Adalid Contreras Baspineiro é sociólogo e comunicólogo boliviano. Ex-secretário geral da Comunidade Andina (CAN).

 

 1 Contreras Baspineiro, Adalid. Sentipensamientos. De la comunicación-desarrollo a la comunicación para el vivir bien. Quito, UASB/Editorial Tierra, 2014, p. 81.

 

2 Conversa del mundo entre Silvia Rivera Cusicanqui e Boaventura de Sousa Santos, no Hotel Allkamari, Valle de las Ánimas, La Paz, Bolivia, 16 de outubro de 2013. Publicado em 12 de março de 2014 em http://alice.ces. uc.pt/news/p:2753

 

3 Choquehuanca, David. Suma qamaña: vivir bien, no mejor. Koinonía, Agenda latinoamericana, 2010, p. 1.

 

4 Como propõe a Encíclica Laudatio Sí, Capítulo IV, Ecología Integral.

 

5 Beltrán, Luis Ramiro, “Adiós a Aristóteles: la comunicación horizontal”, em Comunicación y Desarrollo, No 6. São Paulo, Cortez, 1981, pp. 19-20.

 

6 Conforme o conceito que Orlando Fals Borda recu perou dos pescadores do rio Magdalena, significando que pensamos e sentimos ao mesmo tempo.

 

 

https://www.alainet.org/de/node/178879?language=en

Publicado en Revista: ¿Qué cooperación para qué desarrollo?

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