Em 1955, lições contra o golpismo de 2017
Constituição em vigor define, no artigo 142, a subordinação das Forças Armadas aos três poderes civis.
- Opinión
Num país onde não faltam lições amargas que mostram derrotas da democracia para conspirações militares, o ano de 1955 guarda uma lição positiva para os impasses e angústias do Brasil de 2017. As semelhanças são muitas e serão explicadas nos parágrafos adiante. A diferença está no comportamento da hierarquia militar.
Em 1955, viu-se um esforço decisivo do ministro da Guerra, Henrique Lott, para afastar e punir oficiais envolvidos em atos de indisciplina. Resultado: em outubro daquele ano, após sucessivas ameaças de golpe, ocorreram eleições que conduziram Juscelino Kubitschek ao Catete, de onde ele sairia na condição dos mais populares presidentes de nossa história republicana.
Em 2017, numa apresentação numa loja maçônica de Brasília, o general Antonio Hamilton Mourão falou que "seus companheiros de Alto Comando do Exército" entendem que uma "intervenção militar" poderá ocorrer se o Judiciário "não resolver o problema político". Apesar da clareza da linguagem, Mourão não sofreu nenhuma sanção de seus superiores. Nem do general Eduardo Villas Boas, comandante do Exército. Nem do ministro da Defesa, Raul Jungman. Nem do presidente Michel Temer, definido pela Constituição como Comandante-em-chefe das Forças Armadas.
Um aspecto importante é que a Constituição em vigor define, no artigo 142, a subordinação das Forças Armadas aos três poderes civis. Apenas por determinação do Executivo, Legislativo ou Judiciário, é que elas são chamadas a intervir para proteger a lei e a ordem. Na Carta em vigor em 1955, as Forças Armadas eram responsáveis pela defesa da ordem pública -- mas a subordinação ao poder civil não estava explicitada com a mesma clareza.
Como 2017, que vive as dores previsíveis da crise de legitimidade que tem origem no golpe que afastou Dilma Rousseff, 1955 foi o ano que sucedeu a pressão militar que levou Getúlio Vargas ao suicídio. O presidência era ocupada por Café Filho, um vice que, a exemplo de Temer, traiu o titular para sentar-se em sua cadeira.
Nem todos se recordam mas, diante da notícia da morte do presidente criador da CLT e da Petrobras, o país assistiu à uma gigantesca reação de trabalhadores e da população pobre. Foi uma mobilização espontânea, que tomou as grandes cidades para expressar raiva e inconformismo, dando início a um ascenso popular que tornou-se um fator decisivo nas lutas políticas nos anos seguintes.
Num sinal de semelhança com 2017, quando Lula lidera todas as pesquisas, o ano de 1955 começou com uma campanha presidencial e um acordo capaz de trazer de volta a aliança política que se tentara expelir da cena política através do emparedamento de Getúlio: Juscelino Kubitschek, da ala desenvolvimentista do PSD, e João Goulart, o ministro do Trabalho que se tornaria herdeiro de Vargas.
Menos de um ano depois da morte de Vargas essa aliança constituía uma verdadeira chapa-pesadelo dos adversários. Eles haviam, justamente, tramado a deposição de Getúlio em todos os detalhes, na esperança de livrar-se de um projeto político comprometido com a industrialização e o reconhecimento dos direitos dos pobres e excluídos.
Por motivos fáceis de compreender, a dupla JK-Jango formava uma composição irresistível, do ponto de vista político-eleitoral. Adversário ferrenho de Vargas até o suicídio, o PCB, que mesmo na ilegalidade, era o principal partido operário da época, realinhou-se. Apoiou a chapa JK-Jango numa manifestação que teve direito a discurso de Luiz Carlos Prestes.
Nesta situação, era óbvio, como hoje, que um país de democracia instável como o nosso iria assistir a múltiplas ameaças golpistas.
Num esforço para atualizar a mobilização militar que derrubara Getúlio, Carlos Lacerda lançou uma ameaça contra JK que se tornaria célebre: “não poderá ser candidato; se for, não poderá vencer; se vencer, não será empossado”.
Através da Tribuna da Imprensa, Lacerda fabricou uma denúncia falsa sobre um acordo com o presidente argentino Juan Domingo Perón, principal referência na política do continente, que teria como finalidade criar uma república “social-sindicalista” na América do Sul. Era uma ficção pura, mas serviu para alimentar uma pressão permanente contra JK através do candidato a vice.
Na Câmara de Deputados, outra manobra. A UDN tentou aprovar uma cláusula eleitoral que sob medida para sua condição uma minoritária. Exigia que um presidente só fosse empossado caso tivesse a maioria absoluta – 50% mais 1 – dos votos. Caso nenhum concorrente atingisse este patamar, a palavra final caberia ao Congresso.
A emenda foi derrotada mas ocorreu o que era previsível. Quando a apuração apontou para a vitória de JK, que obtivera um terço dos votos e uma vantagem apertada de 500 000 eleitores sobre o candidato conservador, Juarez Távora, tentou-se impedir sua posse. Num argumento risível pelo primitivismo, alegou-se que JK havia recebido votos do PCB, que não poderiam ser contabilizados – pois o partido encontrava-se na ilegalidade desde 1947.
Marcada por pronunciamentos militares sucessivos destinados a impedir a posse do candidato vitorioso nas urnas, as semanas finais de 1955 marcaram um período de tumulto político, conspiração civil e atos de indisciplina militar. O país assistiu ao licenciamento, posse e impeachment de dois presidentes que não esquentaram na cadeira – Café Filho e Carlos Luz – e foi mantido em estado de sítio por um terceiro, Nereu Ramos, nas semanas que antecederam, enfim, à posse de JK.
As tentativas de golpe que procuravam minar a vontade das urnas foram respondidas com iniciativas na direção contrária, em contragolpes que marcaram a liderança de Henrique Teixeira Lott como ministro da Guerra (cargo que hoje é ministro do Exército). O aspecto essencial consistiu em exigir a punição de militares que faziam pronunciamentos de natureza política.
Numa atuação exemplar, mesmo em situações extremas, quando a disputa deixara o plano constitucional para assumir a fisionomia de um confronto aberto, Lott trabalhava pelo cumprimento do regimento militar e a cobrava punição de atos de indisciplina, sempre um caminho para confrontar indesejáveis intervenções destinadas a enfraquecer a vontade das urnas.
O saldo demonstrou que, num país onde a politização militar se tornara um fato histórico desde o 15 de novembro de 1889, a disciplina é uma forma de assegurar a submissão das Forças Armadas aos poderes que representam a soberania do povo. Sua preservação confunde-se com a preservação da democracia.
Juscelino e Jango foram empossados em janeiro de 1956, dando início a um governo que, mesmo enfrentando duas rebeliões militares, fez um governo que terminou reconhecido pela maioria dos brasileiros. Seria ingenuidade imaginar que se cunhou, naquele período, uma formula mágica para enfrentar manobras golpistas contra a democracia. Novas operações anti-democráticas ocorreram em 1961, na crise da renúncia de Jânio, e em 1964, com o golpe que só seria vencido 21 anos depois. Não há dúvida, porém, que em 1955 fez-se uma travessia bem sucedida.
Conversando com este blogueiro, um antigo ministro da Defesa avaliou que, numa situação ideal, um pronunciamento como o do general Mourão era o caso de voz de prisão. "Estamos falando de um crime contra a Constituição," diz ele. Considerando a fraqueza sem fim do governo Michel Temer, a opinião é que o general poderia ter recebido, pelo menos, uma sanção menos dura -- como a passagem antecipada para reserva, por exemplo. A avaliação é que se trata de um fato grave demais para fingir que não aconteceu nada.
- Paulo Moreira Leite, jornalista e escritor, é diretor do 247 em Brasília
21 de Setembro de 2017
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