Entrevista - Jorge Glas

“Como Lula, sou vítima de lawfare”

24/04/2018
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Jorge Glas
Foto: Wikimedia Commons
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Um dos soldados da Revolução Cidadã do ex-presidente Rafael Correa no Equador, Jorge Glas está na cadeia desde outubro de 2017. A prisão preventiva converteu-se em dezembro em uma pena definitiva de seis anos por associação ilícita, um desdobramento da delação da Odebrecht nos EUA e no Brasil.

 

Até ir em cana, Glas era o vice-presidente de Lenin Moreno, o sucessor de Correa, cargo do qual foi afastado de vez pelo Parlamento em janeiro. Tinha sido vice de Correa também, de 2013 a 2017.

 

Agora quem enfrenta um processo parlamentar é seu algoz, Carlos Baca Mancheno, ex-procurador-geral da República. Baca foi deposto em março por vazar um telefonema do então presidente do Legislativo, José Serrano, com um foragido da Justiça, Carlos Pólit, ex-controlador-geral país.

 

No papo gravado em 2017, Serrano dizia ser preciso derrubar Baca até o fim do ano. Caíram ambos, Serrano e Baca, após o vazamento do áudio.

 

Na Páscoa, Glas ganhou um rosário e um livro do argentino que comanda o Vaticano. Presentes que encarou como um “forte símbolo do que o Papa Francisco pensa do que se passa na região”.

 

E o que se passa, segundo Glas? Uma caçada a líderes progressistas pela via judicial, a exemplo da sofrida pelo ex-presidente Lula, disse em entrevista concedida a CartaCapital através de uma irmã, Silvia.

 

Abaixo, a íntegra da entrevista.

 

CC: O senhor diz que ter sido acusado e condenado por vingança da Odebrecht. Por que a empresa iria querer vingança?

 

JG: Devemos voltar a 2008. Tínhamos o problema de uma hidrelétrica mal construída pela Odebrecht [a usina de San Francisco, segunda maior do país, parou de funcionar menos de um ano após entregue pela empreiteira]. Eu era presidente de uma holding de empresas do Estado, entre elas as de energia.

 

Coube a mim, em nome do Equador, apresentar a reivindicação legal para a Odebrecht reparar o dano. Eles se recusaram, queriam cobrar pela reparação. Isso era inaceitável. O problema subiu até o presidente [Correa na época] e eu sugeri a expulsão da empresa do Equador. Isso representou para eles uma perda de cerca de 800 milhões de dólares em contratos de construção das hidrelétricas de San Francisco, Toachi Pilatón e Multipurpose Baba e do Aeroporto de Tena.

 

Ao final, eles tiveram que reparar o dano sem nenhum custo e compensar o Equador em cerca de 80 milhões. Posteriormente, solicitei que fosse revertida a concessão do Porto de Manta à Odebrecht, por não atender aos interesses da nação, perda de outros 200 milhões.

 

E, finalmente, quando foi tornado público o relatório do Departamento de Estado dos EUA sobre o sistema de propinas de Odebrecht, determinei o não pagamento de aproximadamente 100 milhões que estavam pendentes de pagamento. A Odebrecht tem mais de 1,3 bilhão de dólares em motivos para me odiar.

 

CC: O senhor diz ter sido ameaçado por Marcelo Odebrecht. Como foi isso?

 

JG: Em 2008, no meio da cobrança de reparos à usina de São Francisco, ele veio me ver e em tom arrogante me disse que “compreendia o uso político dessa questão, que ia fazer reparos na usina e depois me mandar a fatura”. Eu categoricamente rejeitei esse comentário e o botei para fora do meu gabinete. Da porta, ele afirmou: “Você nem sempre será um funcionário público, mas eu sempre serei Marcelo Odebrecht”.

 

CC: O delator José Conceição Santos, da Odebrecht, disse ter pago 15 milhões de dólares em subornos ao senhor. Recebeu esse dinheiro? Que dinheiro é esse?

 

JG: Santos está mentindo. Nem o procurador Baca nem Santos têm sido capazes de apresentar qualquer prova contra mim, porque não existe. Um acusado e criminoso confesso, Kepler Verduga [dono de uma empresa de fornecedora da Odebrecht no Equador, a Equitransa] disse claramente durante seu julgamento que funcionários da Odebrecht no Equador pediam a ele dinheiro em troca de subcontratos. Ou seja, que os funcionários da Odebrecht roubavam entre e para eles.

 

Eu apresentei duas auditorias do meu patrimônio que foram realizadas pela Controladoria Geral do Estado. Neste tipo de auditoria foi analisado não só meu patrimônio, mas cada movimento financeiro meu e de minha esposa até o ano de 2016.

 

Toda a minha renda é justificada e corresponde ao meu salário de funcionário público e, no caso da minha esposa, ao salário em uma empresa privada onde trabalhou por mais de 12 anos. A Procuradoria pediu uma análise adicional ao Serviço de Rendas Internas [o leão do Equador] e à Unidade de Investigação Financeira [o Coaf de lá].

 

Eu sou o servidor mais auditado na história do Equador sem que se tenha encontrado uma única irregularidade. Reitero que fui condenado sem uma única prova. A única fonte da minha sentença é a Odebrecht: a delação verbal de um corrupto confesso que nem sequer foi julgado no Equador graças a seus acordos.

 

CC: Santos apresentou ao procurador-geral a gravação de uma conversa entre vocês como prova.

 

JG: Essa gravação é a maior prova da minha inocência. Usam uma gravação clandestina, um ato de espionagem política, sem que sequer se questione esse aspecto. Estávamos os dois sozinhos no gabinete e em nenhum momento eu menciono algo incorreto e, portanto, nada que possa respaldar as acusações contra mim.

 

Eu nem sequer menciono algo que possa levar você a deduzir algo. Peço por favor a você e à imprensa responsável para ouvir essa gravação e dar o testemunho público da montagem que foi feita para que fosse tratado como prova algo que é impossível que o seja.

 

CC: Santos disse ter pago 150 mil dólares a seu tio Ricardo Rivera. Seu tio recebeu dinheiro?

 

JG: Isso deve ser respondido por Ricardo Rivera. Eu rejeito qualquer uso do meu nome que qualquer pessoa tenha feito ou faça pelas minhas costas por qualquer razão.

 

CC: Mas Rivera também foi condenado. O senhor não sabia dos negócios dele?

 

JG: Há mais de dez anos nosso relacionamento é apenas familiar.

 

CC: O acordo de cooperação da Odebrecht com EUA e Brasil foi manipulado contra o senhor? Por quê?

 

JG: Porque eu não estou envolvido em nenhum caso. Existem delações por encomenda para perseguir objetivos políticos. Mesclam mentiras com verdades, culpados com inocentes, para que o público acredite que todos são culpados. Condenam sem provas sob a figura legal da associação ilícita que, segundo a lei equatoriana, se encontra no capítulo do terrorismo.

 

É crime o simples ato de associar-se, mesmo sem resultados, uma maneira de condenar qualquer inocente sem provas. O relatório do Departamento de Justiça dos EUA nem me nomeia, e a fonte é a própria Odebrecht. O procurador-geral do Equador mente descaradamente. No julgamento, ele disse que Santos havia sido condenado no Brasil e que não o acusaria no Equador devido ao princípio de “Non Bis In Idem” [ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato].

 

Santos não foi condenado em última instância no Brasil. A absolvição da Odebrecht no Equador constitui, portanto, uma fraude processual. Baca não poderia não acusar Santos, quem deveria decidir isso era um juiz. É mais do que óbvio que isso é parte de um pacto político para me tirar da Vice Presidência.

 

CC: Qual seria o interesse do procurador-geral de manipular a delação?

 

JG: Cumprir seus acordos com a Odebrecht que agora começam a ser revelados. Eu repito, pelo menos no Equador, não é possível não acusar alguém que tenha se declarado culpado. Foi uma troca, o procurador-geral cumpriu um acordo com Odebrecht, com o poder político, se prestou a manter a impunidade da empresa corrupta e corruptora e entregou a Vice Presidência da República.

 

Com o pronunciamento público [em 9 de março] de José Serrano, ex-presidente da Assembleia destituído [no mesmo dia] devido a uma denúncia de Baca, ficou revelado que há acordos e transgressões que certamente serão expostos no julgamento político do procurador Baca que está em andamento.

 

Serrano mencionou a existência de pactos e provas forjadas pelo procurador. Deixe-me repetir, não há uma única prova contra mim. O procurador, uma vez terminado o julgamento, ficou como no início, sua única “prova” era a declaração verbal, e não sustentada com nenhuma prova, de Santos.

 

CC: Lula também diz que foi condenado sem provas. É coincidência o que acontece no Equador e no Brasil?

 

JG: O libreto é exatamente o mesmo, a Lawfare [lei usada como arma de guerra] é o novo Plano Condor [caçada conjunta das ditaduras militares sul-americanas contra opositores]. Não só as oligarquias e a mídia mercantilista de nossos países estão envolvidas, há mais, há estratégias geopolíticas.

 

Abriram a Caixa de Pandora, a associação ilícita é a maneira moderna de condenar sem provas, com o aplauso de certa imprensa e da direita oligárquica. Primeiro eles destroem sua reputação na mídia, depois conseguem uma testemunha falsa e aí te condenam. Mas cada vez mais os cidadãos se dão conta do atropelo, graças às redes sociais e à sociedade da informação já não há mais o cerco total da mídia.

 

E há os tribunais internacionais. Nós que não temos nada a esconder não fugimos. Lula está no Brasil, Dilma [Rousseff] está no Brasil, Cristina [Kirchner, ex-presidente] na Argentina, eu estou na prisão. Prefiro ser um inocente preso a um covarde que foge.

 

CC: Por que o procurador-geral protegeria a Odebrecht no Equador? O que ele ganha com isso?

 

JG: Espero que ele responda isso durante o seu impeachment. Ele terá que responder.

 

CC: O senhor o acusa de ter mentido aos tribunais sobre os acordos da Odebrecht e de José Santos no Brasil. Qual foi a mentira?

 

JG: Baca disse ao júri que Santos havia sido condenado no Brasil. No entanto, o documento escrito que ele apresentou era o acordo entre Santos e o procurador-geral do Brasil [Rodrigo Janot, na ocasião]. A lei equatoriana exige que, para absolver alguém que já tenha sido julgado em outro país pelo mesmo crime, a sentença proferida nesse outro país tem de ser res judicata, ou seja, de última instância e executada.

 

Além disso, há um procedimento detalhado no Código Geral de Processos [do Equador]para homologar as sentenças de não acusação e, neste caso [da Odebrecht no Equador], sabemos que nem sequer existe. Baca mentiu, alterou o estado das coisas, e essa mentira que ele usou para absolver a Odebrecht no Equador é um crime punível com pena de prisão de 3 a 5 anos.

 

Já contei anteriormente: o procurador-geral foi ao Brasil no começo de junho [de 2017] e me ligou para dizer que estava feliz porque havia confirmado minha absoluta inocência. Ele também ligou para o secretário da Presidência, Eduardo Mangas [nicaraguense que renunciou em dezembro, após a divulgação de gravações clandestinas a mostrá-lo pondo em dúvida e eleição vencida por Lenin Moreno], e para o ex-presidente Correa. Na verdade, já havia pactuado minha cabeça com a Odebrecht e com o poder político do Equador. Todo mundo sabe que eu sou inocente.

 

CC: Mas, se é mentira, por que a Justiça levou em conta a informação no seu julgamento?

 

JG: Porque tudo é parte de uma conspiração para me tirar da Vice Presidência, eu me tornei a pedra no sapato para que eles [do governo, da oposição, da mídia e dos bancos]pudessem fazer e desfazer do país como estão fazendo agora.

 

Uma amostra irrefutável das irregularidades e do nível de conspiração: durante o meu julgamento, quando um especialista em informática indicado pelo próprio tribunal [Luis Hurtado] anunciou a nulidade de um pen drive usado como prova contra mim, o júri impediu que ele lesse seu relatório. Embora seja difícil acreditar, isso não só aconteceu, como o especialista foi ameaçado pelo procurador.

 

Ao tornar público [em dezembro de 2017] por conta própria o resultado de seu trabalho, como é permitido por lei, ele foi punido! Se você deseja comprovar isso, existem gravações orais de todo o julgamento que são de acesso público mediante solicitação. Eu irei aos tribunais internacionais, não será possível sustentar essa canalhada contra mim fora do Equador.

 

Minha demissão como vice-presidente também foi ilegal, não passou pelo controle do Tribunal Constitucional [a última instância equatoriana] o tema “abandono do cargo”, como é obrigatório. O que fizeram foi simples e ilegalmente, com uma maioria simples na Assembleia Nacional [o parlamento], colocar outra pessoa na Vice Presidência.

 

CC: A Procuradoria acusou-o de ter responsabilidade política pela corrupção da Odebrecht.

 

JG: A Procuradoria não pode determinar a responsabilidade política. Não está em suas competências. Além disso, como eu poderia saber que, na escuridão dos paraísos fiscais em contas secretas, a Odebrecht implementou uma rede de tráfico de influência corrupta, através de empreendedores privados? Eu não sou clarividente.

 

O FBI [a Polícia Federal do Tio Sam] disse que desarmar essa rede levaria 100 anos [103 anos, conforme resposta a um pedido de colaboração enviado à PGR brasileira em algum momento entre o fim de 2016 e o início de 2017].

 

Não posso reconhecer a responsabilidade política por algo que não apenas eu, mas o mundo, não conhecia. O esquema da Odebrecht violou 123 países, inclusive os EUA [foram 123 pedidos de colaboração enviados a 34 países pelo Brasil]. O mais surpreendente e questionável é que, no Equador, ela nem sequer foi a julgamento, o procurador não a acusou.

 

CC: Sua situação parece com a de um ex-membro do governo Lula, José Dirceu, que em 2012 foi condenado como líder político de um esquema de corrupção do qual não havia provas contra ele.

 

JG: Não o conheço, mas conheço a acusação e a condenação contra o ex-presidente Lula, o julgamento contra a ex-presidente Cristina Fernandez [de Kirchner] e, agora, as acusações contra ela por associação ilícita.

 

É o novo Plano Condor, a judicialização da política com o aplauso da imprensa mercantilista, a vingança contra os líderes progressistas que tiraram dezenas de milhões de latino-americanos da pobreza, a vingança por terem governado para o povo e não só para as elites, como era antes. No Equador, eles também tentam ir contra o ex-presidente Rafael Correa, eu estou preso sem provas porque eu fazia parte da equipe de Rafael Correa.

 

CC: Por que houve uma ruptura entre o Correa e o presidente Lenin Moreno?

 

JG: Desde o primeiro dia do atual governo começou o ataque às conquistas do que chamamos de década vitoriosa, a década de Rafael Correa.

 

CC: Acredita que o governo Moreno trabalhou com Baca por sua condenação? Por que o presidente faria isso?

 

JG: Acho que você deveria perguntar a eles.

 

23/04/2018

https://www.cartacapital.com.br/internacional/201ccomo-lula-sou-vitima-de-lawfare201d

 

https://www.alainet.org/de/node/192461?language=es
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