Lembrando caçada a JK, perseguição a Lula prepara novo 64
Temos os movimentos evidentes de uma ditadura -- ou pós-democracia -- em marcha. Como há 54 anos, há uma alternativa de preservação democrática.
- Opinión
Nada mais exasperante do que a falsa perplexidade de políticos e acadêmicos que reconhecem a gravidade da crise mas fingem ignorar que a única saída real passa pela liberdade de Lula e seu retorno de pleno direito à campanha presidencial de 2018.
As pesquisas eleitorais informam a quem quer ser informado que, cinco décadas depois do golpe de 64, o país se encontra numa encruzilhada semelhante àquela que produziu uma ditadura de 21 anos.
Temos os movimentos evidentes de uma ditadura -- ou pós-democracia -- em marcha. Como há 54 anos, há uma alternativa de preservação democrática.
Em 1964, este nome era Juscelino Kubitschek, favorito disparado em eleições marcadas para 1965. Quando assinou a cassação de JK, usando como pretexto acusações jamais demonstradas de corrupção – coincidência importante, vamos combinar -- o presidente-ditador Castello Branco escancarou a natureza do regime a caminho. Não havia lugar para o moderado e conciliador JK.
A intervenção militar que iria durar um ano prolongou-se durou 21 e a providência seguinte do primeiro ditador foi esticar o próprio mandato. A conclusão é conhecida. A eleição presidencial de 1965 só foi ocorrer em 1989, quando os principais personagens do período descansavam no cemitério.
Se é inevitável encontrar pontos de contatos entre a situação de JK ontem e a de Lula, hoje, é necessário reconhecer que só na ficção científica uma história pode ser escrita antes dos fatos. Mas em 2018 é difícil negar uma certa evolução semelhante no movimento das pessoas e das coisas.
Ponto culminante de uma perseguição jurídico-midiática que teve início nas denúncias da AP 470, agravada por uma articulação de inegável caráter golpista que derrubou Dilma, os dois meses e uma semana de prisão de Lula em Curitiba, tiveram duas consequências previsíveis.
A primeira foi abrir caminho a Jair Bolsonaro, dando ao fascismo uma presença que jamais obteve em 129 anos de República, nem mesmo sob a ditadura de 64.
A segunda consequência foi completar a destruição pública dos dois grandes partidos da democratização, PMDB e PSDB.
Construídas na fronteira entre a conciliação e a resistência ao regime dos generais, lideranças respeitáveis como Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, Franco Montoro e Mário Covas, jamais atuaram pela organização independente dos trabalhadores e da população mais pobre.
Nem fizeram da luta contra a desigualdade ou pela soberania nacional sua prioridade. Tinham outras prioridades, outros aliados, outra visão de mundo, outro projeto.
Mesmo assim, foram responsáveis pela condução de uma transição que permitiu a confecção da mais democrática Constituição de nossa história, que reconheceu, mais do que qualquer outra, a imensa dívida de nossas instituições com a maioria explorada e oprimida da população brasileira.
Tornaram-se parte importante do período histórico que produziu a liderança de Lula e seus aliados mais ou menos a esquerda, que abriram caminho para mudanças e inovações que o mundo inteiro reconhece e a maioria dos brasileiros não esquece.
Ao ingressar, a partir de 2014, numa conspiração de caráter criminoso contra a democracia – muito mais destrutiva do que os simples “arranhões” admitidos pela eterna auto-indulgência de Fernando Henrique Cardoso -- os herdeiros do PMDB e do PSDB traíram o respeito de quem, entre 1985 e 2003, lhes deu legitimidade e votos para permanecer à frente do Estado brasileiro, sede de uma das dez maiores economias do planeta.
Numa revirada histórica, mudaram de lado. Abandonaram as melhores companhias do palanque das Diretas-Já pela aliança com sobreviventes sombrios das cavernas da ditadura e dos porões da tortura, como se veria na festa de obscenidade e cinismo na qual, com ajuda de Bolsonaro, Dilma Rousseff foi afastada do cargo para ser substituída por Temer, Cunha & Cia.
Por essa razão, na campanha presidencial pagam o preço de quem, pelo ataque a democracia, ousou empobrecer os mais pobres e enfraquecer os mais fracos. Tornaram-se incapazes de manter qualquer liderança real junto às grandes fatias do eleitorado que poderiam dar alguma vitamina a seus candidatos. Sequer são capazes de conversar com povo, que não quer saber de suas mensagens.
Em busca de um truque, tentaram inventar um candidato “novo” nos laboratórios da TV ou na galeria de heróis disponíveis do judiciário. Mas a esperteza mostrou-se manjada demais para uma população cada vez mais desconfiada.
Agora, depois que a Lava Jato que eles tanto estimularam obrigou Aécio e Serra a sobreviver num regime de semi-clandestinidade e mantém a Policia Federal em ronda permanente no Jaburu, a certeza de um fracasso irremediável ronda a campanha de Geraldo Alckmin. A candidatura do recém-convertido ao PMDB Henrique Meirelles sequer existe. É aluguel do aluguel do aluguel em nome do entreguismo mais desavergonhado.
Desse ponto de vista, não há nem pode haver surpresa nenhuma.
Apenas o resultado inevitável de uma opção absurda e insana pelo retorno ao poder através da destruição dos pactos de convivência na diferença – e mesmo na diversidade feroz – que são indispensáveis a todo regime democrático. É um pacto pelos escombros.
Se poderia haver algum candidato a JK-2018 nos partidos que faziam oposição a Dilma e ao PT, todos foram incinerados pelo fogo que queimou as caravelas constitucionais.
Adivinhe quem sobrou? Lula. É até uma questão de honestidade intelectual.
Mantendo-se leal a uma história vitoriosa, Lula é o único que cresce, aquele que é maior do que sua turma. Como JK, que crescia do centro para a esquerda, Lula cresce da esquerda para o centro.
Não há quem faça isso e não há, em lugar nenhum do mundo, arquitetura para estabilizar uma democracia, em particular aquelas que carregam uma herança social pesada e urgente.
Por isso Lula é duas vezes maior do que Bolsonaro, três vezes maior que Marina Silva, cinco vezes maior do que Alckmin ou Ciro.
Sabemos que, apesar da vantagem imensa anunciada nas pesquisas, que apontam seu favoritismo nos dois turnos, em todos os cenários, sua presença na campanha não é nem pode ser vista como garantia de vitória. Sabemos que – felizmente -- isso não existe antes da contagem dos votos.
Mas será uma garantia de sobrevivência da democracia, da possibilidade uma história diferente naquele país que entregou JK e perdeu a liberdade graças a uma aliança de espertalhões sem voto com militares que há muito tempo se articulavam com Washington e com a CIA.
Dois anos depois de 64, não custa lembrar: os mesmos espertalhões iluminados que atendiam pelo nome de Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e tantos outros pediam apoio de JK e João Goulart numa Frente Ampla pela democracia, movimento que não levou a lugar nenhum mas deixou claro para onde o país nunca deveria ter ido.
Meio século depois, ninguém tem o direito de fingir surpresa nem poderá dizer que não sabia de nada. Alguma dúvida?
- Paulo Moreira Leite é colunista do 247, ocupou postos executivos na VEJA e na Época, foi correspondente na França e nos EUA
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