Só um extremismo nos ameaça: o do fascismo
- Opinión
Depois de haver intentado a tomada do poder mediante o putsch integralista de 1938, e na vigência do regime constitucional participado de todas as insurgências golpistas (agosto de 1954; novembro de 1955; agosto de 1961; 1964), é esta a primeira vez que a extrema direita no Brasil se legitima através do movimento de massas, e pode chegar ao governo mediante o processo eleitoral, ponto de partida para a conquista do poder.
É a ameaça fascista.
Nem a História se repete nem o processo social se desenvolve linearmente, nem o conceito de fascismo (ou qualquer conceito, como, por exemplo o de direito ou de democracia) é uma equação. A História sempre reflete as intervenções de tempo e espaço e sofre ainda, no curso do tempo, as transformações impostas pelas novas visões de mundo que reinterpretam, reinventando-o, o fato histórico, assim emprestando-lhe novas leituras valorativas.
Embora então contemporâneas, as formações fascistas do século passado — e foram muitas, caminhando da Europa até a América do Sul, com ensaios como o Estado Novo (1937-1945) –, diferenciaram-se entre si. Diferenciavam-se umas das outras mesmo as experiências europeias mais conspícuas e certamente modelares (a Itália de Mussolini e a Alemanha nazista) da experiência asiática (Japão) e diferenciavam-se todas das experiências portuguesa e espanhola, embora todas guardassem entre si elementos identificadores como mesma base social, o apoio nas grandes massas e a formulação dos intelectuais orgânicos das chamadas elites, em regra ligados ao estamento burocrático.
Esse totalitarismo aqui identificado como fascismo era a panaceia oferecida às burguesias de todo o mundo como aquele regime novo que poderia realizar as reformas sociais capazes de fazer face à ameaça comunista, pois a Revolução de Outubro colocara em evidência os direitos sociais das grandes massas. Essa necessidade aqui serviu de pretexto para a ditadura Vargas (1937-1945); funcionou como elemento aglutinador das forças que nos impuseram o golpe de 1964. Não por acaso a invenção do fantasma do comunismo volta a ser levantado pelos setores mais atrasados do empresariado, especialmente o rural, como um dos fermentos da onda que parece nortear o processo político brasileiro.
Para a mobilização das massas e conquista de quadros, o fascismo, como todo totalitarismo, precisa de um inimigo, interno ou externo; quando não o tem, inventa.
Esse inimigo pode ser o judeu, como já foi, e são hoje as populações palestinas, podem ser os comunistas, os homossexuais, os negros, os amarelos, os persas do Irã, os índios, os imigrantes, a mulher emancipada, os desterrados da terra morrendo nas águas do Mediterrâneo e nas fronteiras de todo o mundo. A identificação e demonização desse inimigo, que precisa ser eliminado, é fundamental: o “comunista”, ou “petista” em sua atualização histórica, é a síntese perfeita de tudo o que atenta contra a tríade Deus, Pátria e Família: homossexualidade, aborto, uso de drogas, desrespeito à propriedade privada, leniência com a criminalidade urbana, direitos humanos, cotas raciais…
O nazismo demonizou judeus e comunistas, perseguiu intelectuais, artistas e cientistas acusados de marxistas; a ditadura militar brasileira elegeu os comunistas como ‘o inimigo interno a ser liquidado’, o mesmo leitmotif das ditaduras militares do Chile, do Uruguai e da Argentina, que inovou com o inimigo britânico com o aditivo da guerra das Malvinas.
O mais preciso, porém, é tratarmos de fascismos, considerando suas características gerais, similitudes e diferenças; nesse sentido é lógico o retorno da onda totalitária, e ao mesmo tempo é injustificável negá-lo sob o pretexto de que não se apresenta segundo o mesmo ritual, as mesmas formas e fórmulas que se consideram clássicas (por exemplo, o modelo italiano), ignorando o impacto promovido pelas circunstâncias históricas dotando-o, esse totalitarismo, de um certo sincretismo certamente responsável pela sua permanente ameaça à democracia.
No Brasil, a tríade “Deus, Pátria e Família”, da campanha fascista, é a mesma evocada pelo salazarismo em Portugal – e ambas inspiradas no Dio, Patria, Famiglia do fascismo italiano divulgada no Brasil pela primeira vez pelo integralismo de Plínio Salgado, ao regressar da Europa e de seu primeiro contato com Mussolini (1930). O nazismo proclamava Deutschland über Alles (‘Alemanha acima de tudo’), fonte do America First (‘A América em primeiro lugar’) que daria novo slogan para a campanha da extrema-direita brasileira ‘O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos’.
O fascismo em todas as suas formas faz o apelo à tradição, alimenta-se no irracionalismo e no culto à ação pela ação (‘ela é bela em si, dispensa a reflexão’). Refratário à crítica, não admite nem a divergência nem o divergente, repele o debate, denuncia a defesa dos direitos humanos e recusa compromissos com a legalidade, que sempre viola. É-lhe inato o fomento à intolerância, a inaptidão para a controvérsia; o apelo à “ordem” e a Deus, o aniquilamento das oposições; bem como o recurso à intimidação, à violência e ao terror.
A ameaça que nos ronda guarda similitudes e distinções. A defesa do Estado e os conflitos com o liberalismo, de sua origem, são no Brasil de hoje substituídos pela desconstituição do Estado, o domínio absoluto do grande capital e a adesão a um neoliberalismo exacerbado que exige a ditadura plena para poder implantar-se.
A xenofobia é invocada sem vínculo com a soberania. O catolicismo italiano, português e espanhol é substituído pelo neopentecostalismo primitivo cujo papel na regressão política brasileira, aliás, ainda não foi devidamente estudado. Despojado de ideário programático, o fascismo nativo de nossos dias se unifica pelo combate à corrupção, pela intolerância, pelo ‘anticomunismo’ visceral e extemporâneo.
O processo social brasileiro não é a reprodução de outros processos –até porque isso é impossível— mas a forma histórica que o totalitarismo, com a lógica fascista (um fascismo adaptado às nossas contingências de toda ordem) está tomando entre nós. Vale dizer, numa sociedade moldada pela escravidão, e centrada na desigualdade, onde o exercício da cidadania é, na prática, um privilégio e não um direito, características do fascismo – como o uso brutal da violência pelo Estado como forma de controle – não representam uma mudança abruta, uma revolução copernicana. Dito de outro modo: os jovens negros das favelas e periferias brasileiras já têm bastante contato com a realidade de uma sociedade e um Estado autoritários, intolerantes, excludentes, que lhes vedam o pleno exercício de sua humanidade – e lhes tiram mesmo a vida sem dificuldade. A implantação de uma modalidade de fascismo no Brasil de hoje seria uma intensificação e formalização do que já é parte do nosso cotidiano.
O papel do homem na História não pode ser valorado ou medido quando apartado do império das circunstâncias, e aqui vale a pena lembrar a lição de Marx no 18 brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem sua própria História, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Transposto para nossa realidade isso significa que o ponto fulcral da análise ao processo brasileiro, comparativa ou não, vis a vis outras experiências, não nos deve remeter à análise reducionista do papel do indivíduo que, no presente processo eleitoral, simboliza, para distintas camadas das grandes massas e setores da burguesia, a efetivação de um discurso autoritário difuso que, organizado, remete para as fontes do conceito clássico do fascismo, com suas variantes, o que é óbvio.
O importante não é o ginete, com ou sem luvas, mas o cavalo e o processo social que o criou e o alimenta; que o fez crescer sem que esse desenvolvimento fosse percebido, nem mesmo após os idos de 2013; nem mesmo após o difícil délivrance do pleito de 2014.
O decisivo, identificado o processo, é contê-lo. O fascismo jabuticaba é um fato objetivo, impondo, no processo eleitoral e, o que é mais importante, para além dele, a disjuntiva democracia ou fascismo, a versão contemporânea de civilização ou barbárie. O dever dos democratas é enfrenta-lo e derrotá-lo.
Ao final de uma campanha eleitoral, na qual não se discutiram propostas para o futuro do país, sejam neoliberais, sejam intervencionistas, sejam nacionalistas, sejam entreguistas, o povo vai votar movido pelo simbólico e não pelo concreto, pois a hidra fascista, convenientemente silenciada pelo infame atentado de que foi vítima, não foi compelida a apresentar suas propostas.
Em face desse desafio, não há inocentes por que não há meio termo ou alternativa, e todos seremos responsáveis pelo que fizermos ou deixarmos de fazer pois ainda está em nossas mãos optar pela democracia, sem a qual não mais haverá propostas a discutir. Cairá o toldo do circo e seremos todos silenciados pela treva da ditadura.
- Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia.
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