O Brasil e a lógica do capitão

26/07/2019
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Enquanto discutimos o inglês macarrônico ou o hambúrguer frito do 03, ou, enquanto discutimos se há fome no país campeão das desigualdades sociais, ou seja, enquanto a imprensa, no geral, e a oposição em particular, mordem as iscas do marketing do capitão, prossegue a desconstituição do que poderia ser, e quase foi, um grande país. Jaz por terra a política externa independente, e com ela se esfumaçam os sonhos de uma política de defesa e de uma força militar comprometida com os interesses nacionais – que vão além da defesa do território, pois compreendem a proteção de suas riquezas e de seus interesses, hoje condicionados à geopolítica do governo Trump.

 

Enquanto nos voltamos para as aparências, sai de foco o essencial, por exemplo a canibalização das empresas estatais estratégicas – Petrobrás à frente –, com a iminente privatização da Eletrobrás e o continuado esvaziamento do BNDES como vetor de desenvolvimento nacional. Em 200 dias da ‘Pauta Guedes’ a Caixa Econômica e o Banco do Brasil já venderam 16 bilhões em ativos. Pari passu prossegue a sangria do FGTS, a dilapidação do maior patrimônio dos trabalhadores agora ameaçando de inanição a indústria da construção civil, em país de desempregados e com déficit habitacional aviltante; segue em ritmo acelerado a desarticulação de instituições como o IBGE (e com ela a pré-desmoralização do Censo Demográfico) e o IBAMA, abrindo as porteiras à depredação ambiental prometida como penhor de campanha ao agronegócio. Tudo parece “naturalizar-se”, nada mais surpreende, os absurdos são aceitos como “desdobramento natural”, inevitável.

 

Para depois da “reforma” da Previdência com seu rol de perversidades (mudança da regra de cálculo que penaliza os trabalhadores submetidos a maior volatilidade laboral; fim da aposentadoria especial como a conhecemos; restrição do abono salarial; exigência de idade mínima para professores e professoras…), o governo já anuncia a reforma tributária, e outras virão, todas com o mesmo escopo: transferir para os trabalhadores o peso da crise gerada pelo capital. O projeto da nova lei das licitações, na Câmara, revê o processo de licenciamento ambiental. Para o quê, todo o mundo sabe.

 

Concomitantemente, avançam o assalto aos direitos dos trabalhadores, os ataques ao pensamento livre e o aparelhamento ideológico das instâncias de poder.

 

Enquanto discutimos se Angra dos Reis pode se transformar em uma Cancún ou se o Rio de Janeiro deve ter ou não um autódromo para disputar com São Paulo, o governo reforça o cerco à Fiocruz, e mais recentemente procura desmoralizar o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais-INPE, para proteger o gangsterismo internacional que desmata a Amazônia.

 

E, peça de resistência do capitão, vai em frente a razia contra a inteligência e a ciência, pois segue de forma ininterrupta, agora formalizado como meta de governo, o projeto de destruição da universidade pública.

 

Qual a explicação para o ódio ao saber, à inteligência, à cultura e à arte – e aos cientistas, aos intelectuais e aos artistas – revelado pelo atual governo?

 

Como entender a complacência (para dizer o mínimo) dos militares para o entreguismo generalizado e a destruição da Universidade, eles que no passado tanto investiram na produção cientifica e no desenvolvimento nacional? Eles que chegaram a sonhar com o ‘Brasil potência’?

 

O capitão faz sua parte incitando a radicalização de seu eleitorado com vistas ao dissenso e ao esgarçamento do tecido social, sua tática e sua estratégia, pois é o instrumento mediante o qual espera não só salvar o mandato, mas preservar-se no poder.

 

Dai à banalização da violência é só meio passo.

 

Enquanto isso, e em consonância, agem as turbas, primeiro nas redes sociais e agora já nas ruas. Em Paraty o jornalista Glenn Greenwald (que estaria sendo alvo de represálias do governo mediante investigações da PF e do COAF) é atacado quando pronunciava palestra no âmbito da FLIP, e em Santa Catarina a colunista Miriam Leitão (insuspeita de esquerdismo, mas ainda assim tachada de “comunista” pela malta hidrófoba, por tecer críticas ao governo), sob ameaças, tem sua participação suspensa em uma feira de livros.

 

E ainda há os que pensam que estamos em face de fatos isolados.

 

Enquanto nos distraímos com o frívolo e o grotesco, a economia patina: o número de indústrias fechadas em São Paulo é o maior em uma década: 2.325 em 2019 contra 1.131 em 2010. O índice paulista não é uma especificidade, mas o termômetro nacional da desindustrialização. No acumulado de 2019 a indústria registra queda de 0,7% (para efeito de comparação: a China desacelerou para um crescimento de… 6,2%).

 

A expectativa do PIB, em queda permanente, é de um crescimento de apenas 0,8% em 2019, quando já chegou a ser estimado em algo como 3%. Entre 2014 e 2019 acumulou uma queda de 4,2% e a indústria de transformação, no mesmo periodo, caiu 14,4%. Recessão nos calcanhares. O famigerado ajuste fiscal, por seu turno, vai mal. Entre janeiro e maio o déficit do governo central alcançou R$ 17,4 bilhões. De junho de 2018 a maio de 2019 o rombo atingiu R$ 152,2 bilhões, cifra altíssima, se considerarmos que o governo já contingenciou R$ 30 bilhões do orçamento deste ano, 6 bilhões só na Educação. E já anuncia um segundo corte de dois bilhões, desta feita para cobrir o rombo com a compra da maioria que aprovou a “reforma da previdência”, ao custo estimado de R$ 10 bilhões anuais, ou 40 em quatro anos (20 milhões de reais anuais por deputado e 40 por líder). A expectativa é de crescimento do déficit, a acelerar-se com a queda da arrecadação que tende a se aprofundar em face da recessão e, por óbvio, a queda da receita, instalando um circulo vicioso.

 

No primeiro trimestre deste ano nada menos de 28.234 milhões de brasileiros não tiveram trabalho, ou trabalharam menos ou desistiram de procurar vaga. Nove milhões de crianças entre zero e 14 anos vivem em situação de extrema pobreza. Enquanto isso, respondemos por cerca de 29% dos lucros planetários do Santander.

 

O capitão é homem do ‘baixo clero’, no Exército (de onde foi virtualmente convidado a sair) e no Parlamento, vereador e deputado federal por cerca de 30 anos. Representa aquele rebotalho que não aceitou nem a “abertura consentida”, nem a política de defesa nacional, nem a política externa, nem o desenvolvimentismo de Geisel hoje acusado de “estatista”; esse rebotalho, revanchista, ressurge perigosamente no poder, pois o bolsonarismo está mais para o Capitão Guimarães e o major Sebastião Curió do que mesmo para Silvio Frota, ídolo do gen. Augusto Heleno.

 

Mau militar, como o qualificou o general-presidemte em depoimento a Maria Celina D’Araujo e Celso Costa (CPDC-FGV), excluído da carreira quando teve vetado o acesso à Escola de Formação de Oficiais, foi eleito e governa respaldado por generais, de Villas Bôas a Heleno, e manipula parcela considerável da população, ainda disposta a sair às ruas, ou intervir nas redes sociais, em sua defesa.

 

Foi eleito com 57,7 milhões de votos repetindo a pauta de 30 anos de vida parlamentar obscura, a defesa da tortura e o extermínio de adversários. É preciso saber o que fazer para enfrentá-lo, mas antes é preciso saber por que um candidato com tal repertório e com tal discurso foi eleito e com eles governa, enquanto não surge um Fiat Elba como uma pedra no meio do caminho.

 

O INPE e seu Diretor – Em mais um ataque à ciência, o capitão põe em risco um patrimônio cientifico-estratégico para o desenvolvimento do pais e a soberania nacional ao acusar o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais-INPE, e seu diretor, o competente e honradíssimo e bravo professor Ricardo Galvão, de manipularem dados relativos ao criminoso desmatamento da Amazônia, que, em um ano, atingiu o desastroso crescimento de 68%.

 

O INPE é uma das mais prestigiosas instituições cientificas do país, respeitada internacionalmente, e ao seu diretor sobram qualificação acadêmica e seriedade como gestor. A esta altura não é relevante o que pensa o capitão sobre nossas instituições mais caras, preocupante é a eventual postura do governo, doravante, em face da instituição que se deve considerar ameaçada, como ameaçado já está o Estado do Maranhão, porque o capitão não vai com as fuças do brilhante governador Flávio Dino.

 

No meio de tanta miséria, todavia, é necessário ressaltar o mais importante, a dignidade, a firmeza e a coragem do professor Ricardo Galvão. Ao final das contas, o episódio serviu, com a invectiva do capitão e a resposta do diretor, para estabelecer a diferença entre um energúmeno e um homem.

 

A pergunta que não pode calar: Quem mandou matar Marielle?

 

- Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

 

 

Leia mais em: www.ramaral.org

 

https://www.alainet.org/de/node/201236
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