A história geralmente ocorre por saltos e zigue-zagues
- Análisis
Quando uma porta bate com força na Caxemira, outra se abre na Argentina. Essa é a natureza de nossas lutas. Em 1859, Friedrich Engels escreveu: “A história geralmente ocorre por saltos e zigue-zagues”. Imaginar a história como uma linha linear que se move em uma direção progressiva é desconcertantemente incorreto. É romântico acreditar que a história é conservadoramente circular – como se a mudança fosse fundamentalmente impossível – ou que a história é progressivamente linear – como se tudo melhorasse de maneira científica. Nenhuma dessas visões são plausíveis.
A história humana é uma luta entre a imaginação por uma vida melhor e as restrições do presente. Algumas dessas restrições são materiais e algumas são sociais. Condições materiais inadequadas e a rigidez de classe podem impedir o progresso humano.
O ataque antidemocrático contra o povo da Caxemira acontece ao mesmo tempo em que o povo da Argentina votou em sua primária para afirmar categoricamente que está farto da política de austeridade (veja nosso Dossiê nº 10 de novembro de 2018 sobre a crise em Argentina e o papel do FMI). A população da Argentina votará novamente em outubro. Ao que tudo indica, eles rejeitarão o presidente Mauricio Macri. Músicos e militantes da Argentina adotaram a antiga canção partidária italiana (Bella Ciao) e a reformularam como um grito contra o neoliberalismo e a austeridade (Macri Chau).
Em dezembro de 2019, nosso dossiê no. 23 fará uma avaliação geral da situação na América do Sul após as eleições de outubro na Argentina, Bolívia e Uruguai. Dilma Rousseff, ex-presidenta do Brasil, refletiu sobre os resultados das primárias na Argentina com o pensamento de que esta era uma “luz no fim do túnel para a Argentina e para a América Latina”.
A história pode se mover em zigue-zagues, mas em termos temporais ela é um quebra-cabeça. Um grande número de eventos significativos parece nos atingir em frequências cada vez mais rápidas. É difícil acompanhar as notícias, quanto mais seguir o que está acontecendo em cada país.
Tragédias aparecem repentinamente e os nomes das comunidades que são pouco conhecidas voam dos nossos lábios – Os Yazidis! Os Rohingyas! Logo eles são esquecidos, apenas para serem substituídos pela próxima calamidade. Mesmo quando os eventos vão passando, a história parece estar parada. Nada realmente muda. Vidas permanecem precárias, os dias parecem repetitivos. A combinação do que parece ser a velocidade da mudança com a experiência da estagnação é o que é desorientadora.
Para fornecer um mapa modesto para navegar em alguns desses eventos, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social produzirá um Alerta Vermelho regular – uma breve avaliação de duas páginas das principais crises que podem ser facilmente impressas e distribuídas. Esperamos que você faça isso em seus movimentos. O primeiro – que está abaixo – é sobre a Caxemira.
Onde fica a Caxemira?
A Caxemira é fundamentalmente contestada, cada hectare é reivindicado por um ou outro país vizinho (Índia, Paquistão e China). Abrange 222.200 quilômetros quadrados – o tamanho de países como Gana e o Reino Unido.
Aproximadamente 17 milhões de pessoas vivem nessa vasta área, principalmente nas regiões controladas pela Índia e pelo Paquistão. Apenas na região indiana a população é de 12,5 milhões. Aksai Chin, controlada pela China, é uma área estéril, apenas abrigando uma estrada que liga o Tibete a Xinjiang.
Qual o problema permanente na Caxemira?
A questão da Caxemira é parte de problemas não resolvidos sobre a divisão do Sul da Ásia, em 1947. Até essa data, a região estava sob o controle de uma monarquia hindu. O rei não estava disposto a aderir à Índia. Foi depois que invasores armados do Paquistão entraram no vale da Caxemira que ele concordou em assinar um Instrumento de Adesão. O movimento político mais popular na região, a Conferência Nacional de Jammu e Caxemira (sob a liderança de Sheikh Abdullah), concordou em se juntar à União Indiana, desde que a autonomia da Caxemira fosse respeitada. A União Indiana consistentemente reduziu essa autonomia.
No dia em que o exército indiano entrou na Caxemira (27 de outubro de 1947), o primeiro-ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, enviou um telegrama ao primeiro-ministro do Paquistão, Liaqat Ali Khan. Nesse telegrama, Nehru escreveu que o futuro da Caxemira “deve ser decidido com os desejos do povo”. O impasse trouxe a disputa ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, que pediu um plebiscito (resoluções 38 e 47).
Caxemira foi dividida pela guerra de 1947 entre a Índia e o Paquistão. Os dois países travaram ao menos quatro grandes guerras (1947, 1965, 1971 e 1999) como resultado desse conflito, que gerou uma insurgência e uma militarização permanente. Estima-se que haja 600 mil soldados indianos na Caxemira. Ambos os países possuem armas nucleares.
As condições na parte indiana da Caxemira são atrozes há décadas. Observadores sérios da região catalogaram abusos dos direitos humanos, incluindo detenções, punição coletiva e tortura de civis. Os relatórios do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, de 2018 e 2019, mostram um desrespeito chocante pelos direitos humanos por parte do governo indiano na Caxemira. Essa violação dos direitos humanos e da dignidade é justificada com base na acusação selvagem de que os caxemires são terroristas.
Do que se trata a atual crise na Caxemira?
Dois artigos da Constituição da Índia (1950) oferecem um compromisso frágil em relação à autonomia do Estado. O Artigo 370 conferiu um status especial a Jammu e Caxemira, permitindo a autonomia sobre certos aspectos-chave de sua governança. O Artigo 35A impediu que residentes permanentes não-caxemires, entre outras coisas, possuíssem terras na Caxemira.
Em 5 de agosto de 2019, o governo indiano de direita de Narendra Modi e o Partido Bharatiya Janata (BJP) invalidaram os artigos 370 e 35A. Esta tem sido uma exigência da direita indiana desde 1948. Em 3 de abril de 2018, a Suprema Corte indiana havia dito que o artigo 370 havia adquirido status permanente. O Artigo 35A não pode ser removido porque a Assembléia Constituinte foi dissolvida em 1957. A base legal para remover esses dois artigos não está disponível, o que será contestado nos tribunais indianos.
Antes do governo de Modi fazer este anúncio no Parlamento, enviou 35 mil soldados indianos para a Caxemira. Ao mesmo tempo, prendeu todos os principais líderes políticos em Jammu e Caxemira. A assembléia legislativa foi dissolvida em novembro de 2018. A imprensa foi cerceada e os serviços de internet e telefone foram fechados.
O governo indiano aboliu inconstitucionalmente o Estado de Jammu e Caxemira e dividiu-o em dois Territórios da União, que serão governados a partir de Nova Deli e não da capital de Jammu e Caxemira, Srinagar.
O Partido Comunista da Índia (marxista) chamou as ações do governo de “assassinato da democracia e do federalismo”.
Qual é o impacto geopolítico da crise de Caxemira?
A mudança do governo indiano em relação a Jammu e Caxemira não deve ser vista meramente como um assunto interno. Está ligado diretamente à atmosfera geopolítica da região.
As fronteiras da China, Índia e Paquistão colidem na Caxemira. Todos os três países guerrearam por partes do território de Caxemira. A Índia e o Paquistão travaram quatro guerras, enquanto a China e a Índia travaram uma grande guerra em 1962.
O principal conflito aqui – desde os anos 1940 – foi entre a Índia e o Paquistão. Os desacordos estão profundamente enraizados na cultura política de cada país. A ascensão da extrema direita na Índia só inflamou ainda mais o conflito.
Junto ao conflito Índia-Paquistão está a maior luta entre os Estados Unidos e a China. A China abriu sua Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR) a qualquer país que quisesse participar. A Índia se recusou em parte por causa de sua antiga história de animosidade contra a China e em parte por causa de sua subordinação aos Estados Unidos. Os Estados Unidos são contra a ICR, pois está comprometido com o cerco à China.
A ICR da China se desenvolveu no Paquistão e no Nepal. O Corredor Econômico do Paquistão da China (CPEC), de 46 bilhões de dólares, passa pela Caxemira controlada pelo Paquistão, ao longo da Rodovia Karakoram, até o Porto de Gwadar, no Baluchistão. Em 2017, a China e o Nepal concordaram em construir o Corredor Econômico do Himalaia. A Organização das Estradas de Fronteira da Índia tem estado ocupada construindo rodovias ao longo de sua fronteira com a China, da Caxemira ao Butão e a Nagaland.
Em 2017, as tensões aumentaram na região de Doklam, perto da fronteira entre Butão, China e Índia. O Butão diz abertamente que não quer se envolver em um conflito China-Índia. Quer estabelecer sua fronteira com a China, mas é impedido de fazê-lo pela Índia.
O desenho acima é de Chittaprosad, um dos grandes artistas comunistas de sua época. “Em minha obra de arte, represento a tradição de reformadores políticos e éticos”, escreveu Chittaprosad. “Salvar pessoas significa salvar a arte em si. A atividade de um artista significa a negação ativa da morte”. Não é de admirar que ele tenha desenhado esse poderoso quadro para a Caxemira em 1946.
Nossos camaradas Maimoona Mollah, Kavita Krishnan, Jean Drèze e Vimal Bhai foram à Caxemira em uma missão de apuração de fatos de 9 a 13 de agosto. Eles retornaram com uma história angustiante, cujo relatório deve ser amplamente divulgado. “Toda a Caxemira é, no momento, uma prisão sob controle militar”, escrevem eles.
Os hospitais em Jammu e Caxemira se enchem de civis feridos. O jornalista Mudasir Ahmad visitou a maternidade Lal Ded, em Srinagar. Ele conheceu Bilal Mandoo e Raziya, que estavam sentados com seu bebê natimorto. Impossibilitados de sair devido ao toque de recolher, as complicações no nascimento levaram à morte de seu filho. Eles estão presos no hospital. “Eu sinto que estou sufocando aqui”, diz Raziya. Ela fala por todos os caxemires.
Edição: Daniela Stefano
https://www.brasildefato.com.br/2019/08/19/a-historia-geralmente-ocorre-por-saltos-e-zigue-zagues/
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