O bolsonarismo e a desconstrução nacional

Em substituição ao Estado social, a Agenda Guedes promete a implantação do Estado “dos mercados”.

19/09/2019
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Arte: RBA
depois de Gerd Altmann/Pixabay
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Na raiz da articulação internacional da extrema-direita, de que o bolsonarismo é um subproduto, está a desconstrução das sociedades-nacionais, com suas instituições e projetos de desenvolvimento. Esta linha de ação foi formulada por Steve Bannon (ponto central do movimento que chama de nacional-populista, admirador de Matteo Salvini, Victor Orbán e do nosso paraquedista) e está captada pelo documentário “Privacidade hackeada” com as seguintes palavras: “Se você quiser mudar fundamentalmente a sociedade, primeiro tem que destruí-la”. A tese-lema foi repetida pelo capitão Bolsonaro, já presidente, no famoso banquete com o qual homenageou o astrólogo de Virgínia e guru seu e de sua grei: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer”.

 

A desconstrução, em todos os planos, está em andamento.

 

A formulação sofisticada desse projeto antinacional deve-se ao ministro Paulo Guedes em recente entrevista ao Valor (09/09/2019). Ali estão os reais princípios e objetivos do bolsonarismo, que caminham muito além das peraltices e dos arreganhos do capitão, pois constituem um bem estruturado projeto de desmontagem do país, pondo por terra as expectativas do Estado de bem-estar social com o qual sonharam os constituintes de 1988. 

 

Em substituição ao Estado social, a Agenda Guedes promete a implantação do Estado “dos mercados”, com a descontinuidade dos gastos sociais, o fim dos investimentos ensejadores do desenvolvimento, a redução do papel do Estado como agente econômico e o fim da proteção aos hipossuficientes: em síntese, a implantação do reino dos interesses dos lucros privados sobre os interesses nacionais e coletivos. A agenda Guedes, que o bolsonarismo assimilou para bem entender-se com a FIESP e suas adjacências rentistas – pela primeira vez exposto de cabo a rabo nessa entrevista a Claudia Safatle – visa a enterrar o Estado desenvolvimentista que construiu o país moderno, e cujas raízes remontam à revolução de 30. A nova ordem, que pretende prologar-se por dezenas de anos, anuncia um estrago político-econômico-social difícil de ser superado em poucas gerações. O projeto nacional – uma ideia de desenvolvimento abraçada por toda a nação – deixa de ser uma cogitação política para converter-se em uma meta do mercado. A oligarquia cafeeira paulista volta ao poder como oligarquia financeira.

 

O que seriam, em princípio, apenas ideias antidesenvolvimentistas, antissociais e antinacionais, converte-se em formulação concreta mediante a proposta de Lei Orçamentária para 2020 que os alquimistas da Economia elaboraram e o capitão enviou ao Congresso.

 

O ministro ainda não pôde objetivar, mas foi enunciado na entrevista o propósito de extinguir as vinculações constitucionais, como a que garante um mínimo de investimentos à saúde: “Vamos privatizar, desvincular e desobrigar todas as despesas de todos os entes federativos”. Por enquanto, enquanto não retalha a Constituição e monta o que chama de “novo pacto federativo”, ataca as fontes de desenvolvimento econômico e social. Proclama: “Eu quero privatizar todas as empresas estatais. Vamos desinvestir e desmobilizar ativos públicos”. E anuncia a liquidação de estatais na bacia das almas, o Programa de Aceleração das Privatizações, mediante o qual pretende obter do Congresso a autorização para a privatização, em um só ato, de todas as estatais para esse fim selecionadas. Ironia das ironias: um dos vetores dessa desestruturação do Estado nacional, para o bolsonarismo, há de ser o BNDES, que ainda traz em seu nome “desenvolvimento econômico e social”.

 

Quando o Brasil enfrenta um dos maiores déficits habitacionais do mundo, e quando a indústria da construção civil, em crise, é reconhecida como fator de realimentação econômica, o Orçamento para 2020 reduz em 50% os recursos do Minha Casa Minha Vida. Enquanto entre 2009 e 2018 o governo injetou R$ 113 bilhões no programa, o Orçamento para 2020 prevê escassos R$ 2,71 bilhões, a metade da magra dotação de 2019. O Orçamento do Ministério do Desenvolvimento Regional, ao qual está afeto o MCMV, sofreu uma sangria de 27,1% em relação a 2019, somando uma perda de R$ 6,55 bilhões.

 

Os cortes atingem os programas sociais e de infraestrutura, reduzem os investimentos públicos fundamentais para a reativação da economia e a retomada do crescimento, sem as quais não combateremos nem o desemprego nem a pobreza – e voltam a atacar aqueles programas de que dependem nosso futuro, como os investimentos em educação, ciência e tecnologia.

 

As verbas destinadas à CAPES, responsável pela metade das bolsas de estudos de mestrado e doutorado do país, são cortadas pela metade. Sua dotação cai dos insuficientes (e contingenciados) R$ 4 bilhões de 2019 para R$ 2 bi. A função Educação, como um todo, perde R$ 8 bilhões em relação a 2019, quando os recursos já estavam depreciados. A proposta para 2020 é a menor desde 2014, ao cair de R$ 130 bilhões para R$ 110 bilhões. A mesma tesoura se aplaca sobre o CNPq, a mais importante agência brasileira de fomento à pesquisa, que hoje vive a maior crise de sua história, sob o risco, até, de fechamento: a dotação prevista para 2020 é a metade dos parcos recursos de 2015, assinalando uma queda de R$ 2,4 bilhões para R$ 1,2 bilhão. A área de Ciência e Tecnologia contará, em termos reais (valor corrigido pela inflação) com 48% da dotação de 2013.

 

Um caso à parte é o tratamento perverso a que é submetida a UFRJ, a maior universidade federal brasileira.

 

A proposta orçamentária para 2020 prevê investimentos em torno de R$ 8 milhões, o que representa 12% da deprimida dotação de 2019. Para o custeio, o corte chega a 30%, representando em termos reais (valor corrigido pela inflação) os menores recursos desde 2010.

 

Não obstante os incêndios na Amazônia, os recursos destinados à gestão ambiental caem de R$ 8 para R$ 4 bi.

 

O verdadeiro homem-forte do bolsonarismo, o verdadeiro primeiro-ministro, governando ao lado de um presidente com conhecidas limitações cognitivas e autoproclamado analfabetismo em Economia, é o “Posto Ipiranga”, que invoca como missão a política de terra-arrasada. Diz: “Estamos mexendo em tudo ao mesmo tempo. É uma transformação sistêmica”. Como se vê, age e se pauta bem ao estilo preconizado por Steve Bannon, o que só é possível em pais cujo autoritarismo é assimilado pela desmobilização das forças populares, a fragilização da vida sindical e o desprestígio da via política.

 

Mesmo assim, nem todos estão satisfeitos. O vereador licenciado Carlos Bolsonaro, guia do pai presidente, não participa do otimismo do especulador e ameaça quebrar as regras do frágil jogo democrático, se não puder fazer deste país a cloaca dos seus sonhos. Escreve no Twitter “Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos… e se isso acontecer”.

 

O teor golpista salta aos olhos e será um erro irreparável deixá-lo passar em branco como mais uma diatribe do ‘menino desajustado”. O vereador é o principal conselheiro e responsável por tudo o que é publicado nas contas do pai nas redes sociais. Do capitão são conhecidos seu desapreço às instituições democráticas e a admiração por ditaduras, ditadores e torturadores. Não são poucos, na História, os exemplos de democracias corroídas por dentro. Nós mesmos sabemos como a ditadura de 1937 foi construída na domesticidade do regime democrático de 1934. O golpismo é o atalho do autoritarismo e está sempre pronto a vir à tona. A democracia, lembrava Otávio Mangabeira, é uma florzinha tenra, plantada em terra infértil: precisa ser regada todo dia. Não podemos baixar a guarda.

 

A nação quer saber por quem fala Carlos Bolsonaro. Por si é que não é.

 

Autocrítica– Para quem ainda cobra autocrítica do PT e de Lula: “(…) Se eu tivesse que citar um erro, é o de não ter assumido que eu era candidato em 2014 e não assumi porque gosto da Dilma, respeito ela e democraticamente ela tinha o direito de ser candidata. Depois, querer governar no lugar, não dá, na minha cabeça não dá. Não fizemos política corretamente. A Dilma, o PT, eu, todos erramos e colhemos o que plantamos. A direita ensandecida agora pretende destruir o pouco que tínhamos conquistado na área social”. Da entrevista de Lula a Mino Carta e Sérgio Lírio (“Só saio daqui inocentado”), Carta Capital, 15/09/2019.

 

- Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

 

 

Leia mais em: www.ramaral.org

 

https://www.alainet.org/de/node/202222
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